quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012


A REVOLUÇÃO FRANCESA[1]

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Um inglês que não se sinta cheio de estima e admiração pela maneira sublime com que está agora se efetuando uma das mais IMPORTANTES REVOLUÇÕES que o mundo jamais viu deve estar morto para todos os sentidos da virtude e da liberdade; nenhum de meus patrícios que lenha lido a sorte de presenciar as ocorrências dos últimos três dias nesta grande cidade fará mais que testemunhar que minha linguagem não é hiperbólica.
The Morning POST (21 de julho de 1789) sobre a queda da Bastilha.

Brevemente as nações esclarecidas colocarão em julgamento aqueles que têm até aqui governado os seus destinos. Os reis fugirão para os desertos para a companhia dos animais selvagens que a eles se assemelham; e a Natureza recuperará os seus direitos.
Saint-Just; Sur La Constitulion de La France. Discours prononct à Ia Convenlion. 24 de abril de 1793.

I

Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas sócio-econômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes. e a política européia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793. A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as idéias européias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa.
O final do século XVIII, como vimos, foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, às vezes chegando a ponto da revolta, e de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto da secessão: não só nos EU A (1776-83) mas também na Irlanda (1782-4), na Bélgica e em Liège (1787-90), na Holanda ( 1783-7), em Genebra e até mesmo - conforme já se discutiu – na Inglaterra (1779). A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma "era da revolução democrática", em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático e de maior alcance e repercussão.
Na medida em que a crise do velho regime não foi puramente um fenômeno francês, há algum peso nestas observações. Igualmente, pode-se argumentar que a Revolução Russa de 1917 (que ocupa uma posição de importância análoga em nosso século) foi meramente o
mais dramático de toda uma série de movimentos semelhantes, tais como os que -alguns anos antes de 1917 - finalmente puseram fim aos antigos impérios turco e chinês. Ainda assim, há aí um equívoco. A Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenômenos contemporâneos e suas conseqüências foram, portanto, mais profundas. Em primeiro lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso Estado da Europa (não considerando a Rússia). Em 1789, cerca de um em cada cinco europeus era francês. Em segundo lugar, ela foi, diferentemente de todas as revoluções que a precederam e a seguiram, uma revolução social de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante comparável. Não é um fato meramente acidental que os revolucionários americanos e os jacobinos britânicos que emigraram para a França devido a suas simpatias políticas tenham sido vistos como moderados na França. Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na América; mas em Paris ele estava entre os mais moderados dos girondinos. Resultaram das revoluções americanas, grosseiramente falando, países que continuaram a ser o que eram, somente sem o controle político dos britânicos, espanhóis e portugueses. O resultado da Revolução Francesa foi que a era de Balzac substituiu a era de Mme. Dubarry.
Em terceiro lugar, entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas idéias de fato o revolucionaram. A revolução americana foi um acontecimento crucial na história americana, mas (exceto nos países diretamente envolvidos nela ou por ela) deixou poucos traços relevantes em outras partes. A Revolução Francesa é um marco em todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da revolução americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América Latina depois de 1808. Sua influência direta se espalhou até Bengala, onde Ram Mohan Roy foi inspirado por ela a fundar o primeiro movimento de reforma hindu, predecessor do moderno nacionalismo indiano. (Quando visitou a Inglaterra em 1830, ele insistiu em viajar num navio francês para demonstrar o entusiasmo que tinha pelos princípios da Revolução.) A Revolução Francesa foi, como se disse bem, “o primeiro grande movimento de idéias da Cristandade Ocidental que teve qualquer efeito real sobre o mundo islâmico”, e isto quase que de imediato. Por volta da metade do século XIX, a palavra turca vatan, que até então simplesmente descrevia o local de nascimento ou a residência de um homem, tinha começado a se transformar, sob sua influência, em algo parecido com patrie, o termo "liberdade", antes de 1800 sobretudo uma expressão legal que denotava o oposto de "escravidão", tinha começado a adquirir um novo conteúdo político. Sua influência direta é universal, pois ele forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subseqüentes, suas lições (interpretadas segundo o gosto de cada um) tendo sido incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos.
A Revolução Francesa é assim a revolução do seu tempo, e não apenas uma, embora a mais proeminente, do seu tipo. E suas origens devem portanto ser procuradas não meramente em condições gerais da Europa, mas sim na situação específica da França. Sua peculiaridade é talvez melhor ilustrada em termos internacionais. Durante todo o século XVIII a França foi o maior rival econômico da Grã-Bretanha. Seu comércio externo, que se multiplicou quatro vezes entre 1720 e 1780, causava ansiedade; seu sistema colonial foi em certas áreas (como nas Índias Ocidentais) mais dinâmico que o britânico. Mesmo assim a França não era uma potência como a Grã-Bretanha, cuja política externa já era substancialmente determinada pelos interesses da expansão capitalista. Ela era a mais poderosa, e sob vários aspectos a mais típica, das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes.
As novas forças sabiam muito precisamente o que queriam. Turgot, o economista fisiocrata, lutou por uma exploração eficiente da terra, por um comércio e uma empresa livres, por uma administração eficiente e padronizada de um único território nacional homogêneo, pela abolição de todas as restrições e desigualdades sociais que impediam o desenvolvimento dos recursos nacionais e por uma administração e taxação racionais e imparciais. Ainda assim, sua tentativa de aplicação desse programa como primeiro-ministro no período 1774-6 fracassou lamentavelmente, e o fracasso é característico. Reformas desse tipo, em doses modestas, não eram incompatíveis com as monarquias absolutas nem tampouco mal recebidas. Pelo contrário, uma vez que as fortaleciam, tiveram, como já vimos, uma ampla difusão nessa época entre os chamados "déspotas esclarecidos". Mas na maioria dos países de "despotismo esclarecido" essas reformas ou eram inaplicáveis, e portanto meros floreios teóricos, ou então improváveis de mudar o caráter geral de suas estruturas político-sociais; ou ainda fracassaram em face da resistência das aristocracias locais e de outros interesses estabelecidos, deixando o país recair em uma versão um pouco mais limpa do seu antigo Estado. Na França elas fracassaram mais rapidamente do que em outras partes, pois a resistência dos interesses estabelecidos era mais efetiva. Mas os resultados deste fracasso foram mais catastróficos para a monarquia; e as forças da mudança burguesa eram fortes demais para cair na inatividade. Elas simplesmente transferiram suas esperanças de uma monarquia esclarecida para o povo ou a "nação".
Não obstante, uma generalização desta ordem não nos leva muito longe na compreensão de por que a revolução eclodiu quando eclodiu, e por que tomou aquele curso notável. Para isso, é mais útil considerarmos a chamada "reação feudal" que realmente forneceu a centelha que fez explodir o barril de pólvora da França.
As 400 mil pessoas aproximadamente que, entre os 23 milhões de franceses, formavam a nobreza, a inquestionável "primeira linha" da nação, embora não tão absolutamente a salvo da intromissão das linhas menores como na Prússia e outros lugares, estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis privilégios, inclusive de isenção de vários impostos (mas não de tantos quanto o clero, mais bem organizado), e do direito de receber tributos feudais. Politicamente sua situação era menos brilhante. A monarquia absoluta, conquanto inteiramente aristocrática e até mesmo feudal no seu ethos, tinha destituído os nobres de sua independência política e responsabilidade e reduzido ao mínimo suas velhas instituições representativas "estados" e parlements. O fato continuou a se agravar entre a mais alta aristocracia e entre a noblesse de robe mais recente, criada pelos reIs para vários fins, principalmente financeiros e administrativos; uma classe média governamental enobrecida que expressava tanto quanto podia O duplo descontentamento dos aristocratas e dos burgueses através das assembléias e cortes de justiça remanescentes. Economicamente as preocupações dos nobres não eram absolutamente desprezíveis. Guerreiros  não profissionais ou empresários por nascimento e tradição – os nobres eram até mesmo formalmente impedidos de exercer um oficio ou profissão -, eles dependiam da renda de suas propriedades, ou, se pertencessem à minoria privilegiada de grandes nobres ou cortesãos, de casamentos milionários, pensões, presentes ou sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia o status de nobre eram grandes e cada vez maiores, e suas rendas caiam -já que eram raramente administradores inteligentes de suas fortunas, se é que de alguma forma as conseguiam administrar. A inflação tendia a reduzir O valor de rendas fixas, como
aluguéis.
Era portanto natural que os nobres usassem seu bem principal, os privilégios reconhecidos. Durante todo o século XVIII, na França como em tantos outros países, eles invadiram decididamente os postos oficiais que a monarquia absoluta preferira preencher com homens da classe média, politicamente inofensivos e tecnicamente competentes. Por volta da década de 1780, eram necessários quatro graus de nobreza até para comprar uma patente no exército, todos os bispos eram nobres e até mesmo as intendências, a pedra angular da administração real, tinham sido retomadas por eles. Conseqüentemente, a nobreza não só exasperava os sentimentos da classe média por sua bem-sucedida competição por postos oficiais, mas também corroía o próprio Estado através da crescente tendência de assumir a administração central e provinciana. De maneira semelhante, eles - e especialmente os cavalheiros provincianos mais pobres que tinham poucos outros recursos -tentaram neutralizar o declínio de suas rendas usando ao máximo seus consideráveis direitos feudais para extorquir dinheiro (ou mais raramente, serviço) do campesinato. Toda uma profissão, a dos feudistas, nasceu para revi ver os direitos obsoletos desse tipo ou então para aumentar ao máximo o lucro dos existentes. Seu mais celebrado membro, Gracchus Babeuf, viria a se tornar o líder da primeira revolta comunista da história moderna, em 1796. Conseqüentemente, a nobreza não só exasperava a classe média mas também o campesinato.
A situação desta classe enorme, compreendendo talvez 80% de todos os franceses, estava longe de ser brilhante. De fato os camponeses eram em geral livres e não raro proprietários de terras. Em quantidade efetiva, as propriedades nobres cobriam somente um-quinto da terra, as propriedades do clero talvez cobrissem outros 6%, com variações regionais ). Assim é que na diocese de Montpellier os camponeses já possuíam de 38 a 40% da terra, a burguesia de 18 a 19%, os nobres de 15 a 16% e o clero de 3 a 4%, enquanto um-quinto era de terras comuns. Na verdade, entretanto, a grande maioria não tinha terras ou tinha uma quantidade insuficiente, deficiência esta aumentada pelo atraso técnico dominante; e a fome geral de terra foi intensificada pelo aumento da população. Os tributos feudais, os dízimos e as taxas tiravam uma grande e cada vez maior proporção da renda do camponês, e a inflação reduzia o valor do resto. Pois só a minoria dos camponeses que tinha um constante excedente para vendas se beneficiava dos preços crescentes; o resto, de uma maneira ou de outra, sofria especialmente em tempos de má colheita, quando dominavam os preços de fome. Há pouca dúvida de que nos 20 anos que precederam a Revolução a situação dos camponeses tenha piorado por essas razões.
Os problemas financeiros da monarquia agravaram o quadro. A estrutura fiscal e administrativa do reino era tremendamente obsoleta, e, como vimos. a tentativa de remediar a situação através das reformas de 1774-6 fracassou, derrotada pela resistência dos interesses estabelecidos encabeçados pelos parlements. Então a França envolveu-se na guerra da independência americana. A vitória contra a Inglaterra foi obtida ao custo da bancarrota final, e assim a revolução americana pôde proclamar-se a causa direta da Revolução Francesa. Vários expedientes foram tentados com sucesso cada vez menor, mas sempre longe de uma reforma fundamental que mobilizando a considerável capacidade tributável do país, pudesse enfrentar uma situação em que os gastos excediam a renda em pelo menos 20% e - não havia quaisquer possibilidades de economias efetivas. Pois embora a extravagância de Versailles tenha sido constantemente culpada pela crise, os gastos da corte; só significavam 6% dos gastos totais em 1788. A guerra, a marinha e a diplomacia constituíam um-quarto, e metade era consumida pelo serviço da dívida existente. A guerra e a dívida - a guerra americana e sua dívida – partiram a espinha da monarquia.
A crise do governo deu à aristocracia e aos parlements a sua chance. Eles se recusavam apagar pela crise se seus privilégios não fossem estendidos. A primeira brecha no fronte do absolutismo foi uma "assembléia de notáveis" escolhidos a dedo, mas assim mesmo rebeldes, convocada em 1787 para satisfazer as exigências governamentais. A segunda e decisiva brecha foi a desesperada decisão de convocar os Estados Gerais, a velha assembléia feudal do reino, enterrada desde 1614, Assim, a Revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado. Esta tentativa foi mal calculada por duas razões: ela subestimou as intenções independentes do "Terceiro Estado" - a entidade fictícia destinada a representar todos os que não eram nobres nem membros do clero, mas de fato dominada pela classe média - e desprezou a profunda crise sócio-econômica no meio da qual lançava suas exigências políticas.
A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado no sentido moderno nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter "líderes" do tipo que as revoluções do século XX nos têm apresentado, até o surgimento da figura pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um surpreendente consenso de idéias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva. O grupo era a "burguesia”; suas idéias eram as do liberalismo clássico, conforme formuladas pelos “filósofos" e "economistas" e difundidas pela maçonaria e associações informais. Até este ponto os "filósofos" podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo.
Em sua forma mais geral, a ideologia de 1189 era a maçônica, expressa com tão sublime inocência na Flauta Mágica de Mozart (1791), uma das primeiras grandes obras de arte propagandísticas de uma época em que as mais altas realizações artísticas pertenceram tantas vezes à propaganda. Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. “Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis", dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que  “somente no terreno da utilidade comum". A propriedade privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. A declaração afirmava (como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que “todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis"; mas, “pessoalmente ou através de seus representantes". E a assembléia representativa que ela vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembléia democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem esta causa. Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários.

Entretanto, oficialmente esse regime expressaria não apenas seus interesses de classe, mas também a vontade geral do "povo", que era por sua vez (uma significativa identificação) “a nação francesa". O rei não era mais Luís, pela Graça de Deus, Rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus e do direito constitucional do Estado, Rei dos franceses. A fonte de toda a soberania", dizia a Declaração, “reside essencialmente na nação". E a nação, conforme disse o Abade Sieyes, não reconhecia na terra qualquer direito acima do seu próprio e não aceitava qualquer lei ou autoridade que não a sua - nem a da humanidade como um lodo, nem a de outras nações. Sem dúvida, a nação francesa, como suas subseqüentes imitadoras, não concebeu inicialmente que seus interesses pudessem se chocar com os de outros povos, mas, pelo contrário, via a si mesma como inauguradora ou participante de um movimento de libertação geral dos povos contra a tirania. Mas de fato a rivalidade nacional (por exemplo, a dos homens de negócios franceses com os ingleses) e a subordinação nacional (por exemplo, a das nações conquistadas ou libertadas face aos interesses da grande nation} estavam implícitas no nacionalismo ao qual a burguesia de 1789 deu sua primeira expressão oficial. "O povo" identificado com "a nação" era um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia expressá-lo. Mas era também uma faca de dois gumes.
Visto que os camponeses e os trabalhadores pobres eram analfabetos, politicamente simples ou imaturos, e o processo de eleição, indireto, 610 homens, a maioria desse tipo, foram eleitos para representar o Terceiro Estado. A maioria da assembléia era de advogados que desempenhavam um papel econômico importante na França provinciana; cerca de 100 representantes eram capitalistas e homens de negócios. O Terceiro Estado tinha lutado acirradamente, e com sucesso, para obter uma representação tão grande quanto a da nobreza e a do clero juntas, uma ambição moderada para um grupo que oficialmente representava 95% do povo. E agora lutava com igual determinação pelo direito de explorar sua maioria potencial de votos, transformando os Estados Gerais numa assembléia de deputados que votariam individualmente, ao contrário do corpo feudal tradicional que deliberava e votava por "ordens" ou "estados", uma situação em que a nobreza e o clero podiam sempre derrotar o Terceiro Estado. Foi aí que se deu a primeira vitória revolucionária. Cerca de seis semanas após a abertura dos Estados Gerais, os Comuns, ansiosos por evitar a ação do rei, dos nobres e do clero, constituíram-se eles mesmo, e todos os que estavam preparados para se juntarem a eles nos termos que ditassem, em Assembléia
Nacional com o direito de reformar a constituição. Foi feita uma tentativa contra-revolucionária que os levou a formular suas exigências praticamente nos lermos da Câmara dos Comuns inglesa. O absolutismo atingia seus extertores, conforme Mirabeau, um brilhante e desacreditado ex-nobre, disse ao Rei: "Majestade, vós sois um estranho nesta assembléia e não tendes o direito de se pronunciar aqui".
O Terceiro Estado obteve sucesso, contra a resistência unificada do rei e das ordens privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas: os trabalhadores pobres das cidades, e especialmente de Paris, e em suma, também, o campesinato revolucionário. O que transformou uma limitada agitação reformista em uma revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais coincidiu com uma profunda crise sócio-econômica. Os últimos anos da década de 1780 tinham sido, por uma complexidade de razões, um período de grandes dificuldades praticamente para todos os ramos da economia francesa. Uma má safra em 1788 (e 1789) e um inverno muito difícil tornaram aguda a crise. As más safras faziam sofrer o campesinato, pois significavam que enquanto os grandes produtores podiam vender cereais a preços de fome, a maioria dos homens em suas insuficientes propriedades tinha provavelmente que se alimentar do trigo reservado para o plantio ou comprar alimentos àqueles preços, especialmente nos meses imediatamente anteriores à nova safra (maio-julho). Obviamente as más safras faziam sofrer também os pobres das cidades, cujo custo de vida - o pão era o principal alimento - podia duplicar. Fazia-os sofrer ainda mais, porque o empobrecimento do campo reduzia o mercado de manufaturas e, portanto, também produzia uma depressão industrial. Os pobres do interior ficavam assim desesperados e envolvidos em distúrbios e banditismo; os pobres das cidades ficavam duplamente desesperados já que o trabalho cessava no exato momento em que o custo de vida subia vertiginosamente. Em circunstâncias normais, teria ocorrido provavelmente pouco mais que agitações cegas. Mas em 1788 e 1789 uma convulsão de grandes proporções no reino e uma campanha de propaganda e eleição deram ao desespero do povo uma perspectiva política. E lhe apresentaram a tremenda e abaladora idéia de se libertar da pequena nobreza e da opressão. Um povo turbulento se colocava por trás dos deputados do Terceiro Estado.
A contra-revolução transformou um levante de massa em potencial em um levante efetivo. Sem dúvida era natural que o velho regime oferecesse resistência, se necessário com força armada, embora o exército não fosse mais totalmente de confiança. (Só sonhadores irrealistas suporiam que Luís XVI pudesse ter aceito a derrota e imediatamente se transformado em um monarca constitucional, mesmo que ele tivesse sido um homem menos desprezível e estúpido do que era,  casado com uma mulher menos irresponsável e com menos miolos de galinha, e preparado para escutar conselheiros menos desastrosos.) De fato a contra-revolução mobilizou contra si as massas de Paris já famintas, desconfiadas e militantes. O resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da Bastilha, uma prisão estatal que simbolizava a autoridade real e onde os revolucionários esperavam encontrar armas. Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a queda de símbolos. A queda da Bastilha que fez do 14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o princípio de libertação. Até mesmo o austero filósofo Emanuel Kant, de Koenigsberg, de quem se diz que os hábitos eram tão regrados que os cidadãos daquela cidade acertavam por ele os seus relógios, postergou a hora de seu passeio vespertino ao receber a notícia, de modo que convenceu a cidade de Koenigsberg de que um fato que sacudiu o mundo tinha deveras ocorrido. O que é mais certo é que a queda da Bastilha levou a revolução para as cidades provincianas e para o campo.
As revoluções camponesas são movimentos vastos, disformes, anônimos, mas irresistíveis. O que transformou uma epidemia de inquietação camponesa em uma convulsão irreversível foi a combinação dos levantes das cidades provincianas com uma onda de pânico de massa, que se espalhou de forma obscura mas rapidamente por grandes regiões do país: o chamado Grande Medo (Grande Peur), de fins de julho e princípio de agosto de 1789. Três semanas após o 14 de julho, a estrutura social do feudalismo rural francês e a máquina estatal da França Real ruíam em pedaços. Tudo o que restou do poderio estatal foi uma dispersão de regimentos pouco confiáveis, uma Assembléia Nacional sem força coercitiva e uma multiplicidade de administrações municipais ou provincianas da classe média. que logo montaram “Guardas Nacionais" burguesas segundo o modelo de Paris. A classe média e a aristocracia imediatamente aceitaram o inevitável: todos os privilégios feudais foram oficialmente abolidos embora, quando a situação política se acalmou, fosse fixado um preço rígido para sua remissão. O feudalismo só foi finalmente abolido em 1793. No final de agosto, a revolução tinha também adquirido seu manifesto formal, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em contrapartida, o rei resistiu com sua costumeira estupidez, e setores revolucionários da classe média, amedrontados com as implicações sociais do levante de massa, começaram a pensar que era chegada a hora do conservadorismo.
Em resumo, a principal forma da política revolucionária burguesa francesa e de todas as subseqüentes estava agora bem clara. Esta dramática dança dialética dominaria as gerações futuras. Repetidas vezes veremos moderados reformadores da classe média mobilizando as massas contra a resistência obstinada ou a contra-revolução. Veremos as massas indo além dos objetivos dos moderados rumo a suas próprias revoluções sociais, e os moderados, por sua vez, dividindo-se em um grupo conservador, daí em diante fazendo causa comum com os reacionários, e um grupo de esquerda, determinado a perseguir o  resto dos objetivos moderados, ainda não alcançados, com o auxílio das massas, mesmo com o risco de perder o controle sobre elas. E assim por diante, com repetições e variações do modelo resistência - mobilização de massa - inclinação para a esquerda - rompimento entre os moderados - inclinação para a direita - até que o grosso da classe média passe daí em diante para o campo conservador ou seja derrotado pela revolução social. Na maioria das revoluções burguesas subseqüentes, os liberais moderados viriam a retroceder, ou transferir-se para a ala conservadora num estágio bastante inicial. De fato, no século XIX vemos de modo crescente (mais notadamente na Alemanha) que eles se tornaram absolutamente relutantes em começar uma revolução, por medo de suas incalculáveis conseqüências, preferindo um compromisso com o rei e a aristocracia. A peculiaridade da Revolução Francesa é que uma facção_da classe média liberal estava pronta a continuar revolucionária até o, e mesmo além do, limiar da revolução antiburguesa: eram os jacobinos, cujo nome veio a significar "revolução radical" em toda parte.
Por quê? Em parte, é claro, porque a burguesia francesa não tinha ainda para temer, como os liberais posteriores, a terrível memória da Revolução Francesa. Depois de 1794, ficaria claro para os moderados que o regime jacobino tinha levado a revolução longe demais para os objetivos e comodidades burgueses, exatamente como ficaria claro para os revolucionários que "o sol de 1793", se fosse nascer de novo, teria que brilhar sobre uma sociedade não burguesa. Por outro lado, os jacobinos podiam sustentar o radicalismo porque em sua época não existia uma classe que pudesse fornecer uma solução social coerente como alternativa à deles. Esta classe só surgiu no curso da revolução industrial, com o "proletariado" ou, mais precisamente, com as ideologias e movimentos baseados nele. Na Revolução Francesa, a classe operária - e mesmo esta é uma designação imprópria para a massa de assalariados contratados, mas fundamentalmente não industriais - ainda não desempenhava qualquer papel independente. Eles tinham fome, faziam agitações e talvez sonhassem, mas por motivos práticos seguiam os líderes não proletários. O campesinato nunca fornece uma alternativa política para ninguém; apenas, de acordo com a ocasião, uma força quase irresistível ou um obstáculo quase irremovível. A única alternativa para o radicalismo burguês (se excetuarmos pequenos grupos de ideólogos ou militantes impotentes quando destituídos do apoio das massas) eram os "sansculttes", um movimento disforme, sobretudo urbano, de trabalhaãores pobres, pequenos artesãos, lojistas, artífices, pequenos empresários etc. Os sansculottes eram organizados, principalmente nas "seções" de Paris e nos clubes políticos locais, e forneciam a principal força de choque da revolução - eram eles os verdadeiros manifestantes, agitadores, construtores de barricadas. Através de jornalistas como Marat e Hébert, através de porta-vozes locais, eles também formularam uma política, por trás da qual estava um ideal social contraditório e vagamente definido, que combinava o respeito pela (pequena) propriedade privada com a hostilidade aos ricos, trabalho garantido pelo governo, salários e segurança social para o homem pobre, uma democracia extremada, de igualdade e de liberdade, localizada e direta. Na verdade, os sansculottes eram um ramo daquela importante e universal tendência política que procurava expressar os interesses da grande massa de "pequenos homens" que existia entre os pólos do "burguês" e do "proletário", freqüentemente talvez mais próximos deste do que daquele porque eram, afinal, na maioria pobres. Esta tendência pode ser observada nos Estados Unidos (sob a forma de uma democracia jeffersoniana e jacksoniana, ou populismo), na Grã-Bretanha (radicalismo), na França (com os antecessores dos futuros "republicanos" e radicais-socialistas), na Itália (com os mazzinianos e os garibaldinos) e em toda parte. Na maioria das vezes, ela costumou se colocar, nas épocas pós-revolucionárias, como uma ala esquerdista do liberalismo da classe média, mas relutante em abandonar o antigo princípio de que não há inimigos na esquerda, e pronta, em tempos de crise, a se rebelar contra a muralha de dinheiro", “os monarquistas econômicos" ou a cruz de ouro que crucifica a humanidade". Mas o movimento dos sansculottes também não forneceu nenhuma alternativa real. O seu ideal, um passado dourado de aldeões e pequenos artesãos ou um futuro dourado de pequenos fazendeiros e artífices não perturbados por banqueiros e milionários,era
irrealizável. A história se movia silenciosamente contra eles. O máximo que podiam fazer - e isto eles conseguiram em 1793-4 - era erguer obstáculos à sua passagem, os quais dificultaram o crescimento econômico francês daquela época até quase a atual. De fato, o sansculotismo foi um fenômeno tão desamparado que seu próprio nome está praticamente esquecido, ou só é lembrado como sinônimo do jacobinismo que lhe deu liderança no Ano II.

II

Entre 1789 e 1791, a vitoriosa burguesia moderada, atuando através do que tinha a esta altura se transformado na Assembléia Constituinte, tomou providências para a gigantesca racionalização e reforma da França que era seu objetivo. A maioria dos empreendimentos institucionais duradouros da revolução datam deste período, assim como os seus mais extraordinários resultados internacionais, o sistema métrico e a emancipação pioneira dos judeus. Economicamente as perspectivas da Assembléia Constituinte eram inteiramente liberais: sua política em relação aos camponeses era o cerco das terras comuns e o incentivo aos empresários rurais; para a classe trabalhadora, a interdição dos sindicatos; para os pequenos artesãos, abolição dos grêmios e corporações. Dava pouca satisfação concreta ao povo comum, exceto, a partir de 1790, com a secularização e venda dos terrenos da Igreja (bem como dos terrenos da nobreza emigrante) que tinha a tripla vantagem de enfraquecer o clericalismo, fortalecer o empresário rural e provinciano e dar a muitos camponeses uma retribuição mensurável por suas atividades revolucionárias, A Constituição de 1791 rechaçou a democracia excessiva através de um sistema de monarquia constitucional baseada num direito de voto censitário dos “cidadãos ativos” reconhecidamente bastante amplo. Esperava-se que os passivos honrassem sua denominação.
Na verdade, isto não aconteceu. Por um lado, a monarquia, embora a esta altura fortemente apoiada por uma poderosa facção burguesa ex-revolucionária, não podia se conformar com o novo regime. A corte sonhava e conspirava por uma cruzada de: primos reais que banisse a canalha governante de plebeus e restituísse o ungido de Deus, o mui católico rei da França, a seu lugar de direito. A Constituição Civil do Clero (1790), uma má concebida tentativa de destruir não a Igreja, mas a lealdade romana absolutista da Igreja levou a maioria do clero e de seus fiéis à oposição, e ajudou a levar o rei à desesperada e afinal suicida tentativa de fugir do país. Ele foi recapturado em Varennes (junho de 1791) e daí em diante o republicanismo tornou-se uma força de massa; pois os reis tradicionais que abandonam seus povos perdem o direito à lealdade. Por outro lado, a incontrolada economia de livre empresa dos moderados acentuou as flutuações no nível dos preços dos alimentos e conseqüentemente a militância dos pobres das cidades, especialmente em Paris. O preço do pão registrava a temperatura política de Paris com a exatidão de um termômetro e as massas de Paris eram a força revolucionária decisiva: não por mero acaso, a nova bandeira nacional francesa foi uma combinação do velho branco real, com as cores vermelha e azul de Paris.
A eclosão da guerra agravou a situação; isto quer dizer que ela ocasionou uma segunda revolução em 1792, a República Jacobina do Ano II, e, conseqüentemente, Napoleão. Em outras palavras, ela transformou a história da Revolução Francesa na história da Europa.
Duas forças levaram a França a uma guerra geral: a extrema direita e a esquerda moderada. O rei, a nobreza francesa e a crescente emigração aristocrática e eclesiástica, acampados em várias cidades da Alemanha Ocidental, achavam que só a intervenção estrangeira poderia restaurar o velho regime. Esta intervenção não foi muito facilmente organizada, dadas as complexidades da situação internacional e a relativa tranqüilidade política de outros países. Entretanto, era cada vez mais evidente para os nobres e os governantes por direito divino de outros países que a restauração do poder de Luís XVI não era meramente um ato de solidariedade de classe, mas uma proteção importante contra a difusão de idéias perturbadoras vindas da França. Conseqüentemente, as forças para a reconquista da França concentraram-se no exterior.
Ao mesmo tempo. os próprios liberais moderados. e principalmente um grupo de políticos que se aglomerava em torno dos deputados do departamento mercantil de Gironda, eram uma força belicosa. Isto se devia, em parte, ao fato de que toda revolução genuína tende a ser ecumênica. Para os franceses. bem como para seus numerosos simpatizantes no exterior. a libertação da França era simplesmente o primeiro passo para o triunfo universal da liberdade, uma atitude que levou facilmente à convicção de que era dever da pátria da revolução libertar todos os povos que gemiam debaixo da opressão e da tirania. Havia entre os revolucionários, moderados e extremistas uma paixão generosa e genuinamente exaltada em difundir a liberdade; uma inabilidade genuína para separar a causa da nação francesa daquela de toda a humanidade escravizada. O movimento francês, assim como todos os outros movimentos revolucionários, viriam a aceitar este ponto de vista, ou a adaptá-lo, daí até pelo menos 1848. Todos os planos para a libertação européia até 1848 giravam em torno de um levante conjunto dos povos, sob a liderança dos franceses para derrubar a reação européia; e, depois de 1830, outros movimentos de revolta nacional e liberal, como o italiano e o polonês, também tenderam a ver suas nações em certo sentido como o Messias destinado por sua própria liberdade a iniciar os planos libertários de todos os outros povos.
Por outro lado, considerada menos idealisticamente, a guerra também ajudaria a solucionar numerosos problemas domésticos. Era tentador e óbvio atribuir as dificuldades do novo regime às conspirações dos emigrantes e dos tiranos estrangeiros, e lançar contra eles os populares descontentes. Mais especificamente, os homens de negócios argumentavam que as perspectivas econômicas incertas, a desvalorização da moeda e outros problemas só podiam ser remediados se a ameaça de intervenção fosse dissipada. Eles e seus ideólogos deviam pensar, com uma olhadela na experiência britânica, que a supremacia econômica era filha da agressividade sistemática. (O século XVIII não foi um século em que o homem de negócios bem-sucedido estivesse absolutamente casado com a paz.) Além do mais, como logo se veria a, guerra podia ser feita para dar lucros. Por todas estas razões, a maioria da nova Assembléia Legislativa, exceto uma pequena ala direitista, e uma pequena ala esquerdista sob o comando de Robespierre, pregava a guerra. Por estas razões também, quando a guerra chegou, as conquistas da revolução viriam a combinar a libertação. a exploração e a digressão política.
A guerra foi declarada em abril de 1792. A derrota, que o povo (bem plausivelmente) atribuiu à sabotagem e à traição real, trouxe a radicalização. Em agosto-setembro, a monarquia foi derrubada, a República estabelecida e uma nova era da história humana proclamada, com a instituição do Ano I do calendário revolucionário, pela ação armada das massas, os sansculottes de Paris. A heróica idade de ferro da Revolução Francesa começou entre os massacres dos prisioneiros políticos, as eleições para a Convenção Nacional - provavelmente a mais notável assembléia na história do parlamentarismo - e a conclamação para a resistência total aos invasores. O rei foi feito prisioneiro e a invasão estrangeira sustada por um nada dramático duelo de artilharia em Valmy.
As guerras revolucionárias impõem sua própria lógica. O partido dominante na nova Convenção era o dos girondinos, belicosos no exterior e moderados em casa, um corpo de oradores parlamentares com charme e brilho que representava os grandes negócios, a burguesia provinciana e muita distinção intelectual. Sua política era inteiramente impossível, pois somente Estados em campanhas militares limitadas e com forças regulares estabelecidas, poderiam ter esperanças de manter a guerra e os problemas domésticos em compartimentos estanques, como faziam exatamente nesta época as senhoras e cavalheiros britânicos dos romances de Jane Austen. A revolução não estava em uma campanha limitada nem tinha forças estabelecidas, pois sua guerra oscilava entre a vitória total da revolução mundial e a derrota total, que significava a total contra-revolução, e seu exército - o que sobrou do velho exército francês - era incapaz e inseguro. Dumouriez, o maior general da República, logo desertaria para o inimigo. Somente métodos revolucionários sem precedentes poderiam vencer uma guerra dessas, mesmo que a vitória viesse a significar simplesmente a derrota da intervenção estrangeira. De fato, tais métodos foram encontrados. No decorrer de sua crise, a jovem República Francesa descobriu ou inventou a guerra total: a total mobilização dos recursos de uma nação através do recrutamento, do racionamento e de uma economia de guerra rigidamente controlada, e da virtual abolição, em casa e no exterior, da distinção entre soldado e civis. Só foi em nossa própria época histórica que se manifestaram tremendas implicações desta descoberta. Uma vez que a guerra revolucionária de 1792-4 permaneceu por muito tempo - um episódio excepcional, a maioria dos observadores do século XIX não conseguiu entendê-la, mas quando muito observar (e mesmo isso foi esquecido até a opulência do fim da era vitoriana) que as guerras, levam a revoluções e que as revoluções vencem guerras de outro modo invencíveis. Somente hoje em dia podemos ver quanto do que se passou na República Jacobina e no "Terror" de 1793-4 faz sentido apenas nos termos de um moderno esforço de guerra total.
Os sansculottes saudaram um governo revolucionário de guerra, e não apenas porque corretamente defendiam que só assim a contra-revolução e a intervenção estrangeira podiam ser derrotadas, mas também porque seus métodos mobilizavam o povo e traziam a justiça social mais para perto. (Eles desprezavam o fato de que nenhum esforço efetivo de guerra moderna é compatível com a democracia direta, voluntária e descentralizada que acalentavam.) Os girondinos, por outro lado, temiam as conseqüências políticas da combinação de uma revolução de massa com a guerra que eles provocaram. Nem estavam preparados para competir com a esquerda. Eles não queriam julgar ou executar o rei, mas tinham que competir com seus rivais, “a Montanha" (os jacobinos), por este símbolo de zelo revolucionário; a Montanha ganhou prestígio, não a Gironda. Por outro lado, os girondinos queriam realmente expandir a guerra para uma cruzada ideológica geral de libertação e para um desafio direto ao grande rival econômico, a Grã-Bretanha. Neste particular, tiveram sucesso. Por volta de março de 1793, a França estava em guerra contra a maior parte da Europa e tinha dado início a anexações estrangeiras (legitimadas pela recém-
inventada doutrina do direito francês às "fronteiras naturais"). Mas a expansão da guerra, principalmente quando ela ia mal, só fortaleceu a esquerda, a única que poderia vencê-la. Batendo em retirada e derrota da taticamente, a Gironda foi finalmente levada a ataques mal calculados contra a esquerda, que logo se transformariam em uma revolta provinciana organizada contra Paris. Um rápido golpe dos sansculottes derrubou-a em 2 de junho de 1793. Tinha chegado a República Jacobina.

III


Quando o leigo instruído pensa na Revolução Francesa, são os acontecimentos de 1789, mas especialmente a República Jacobina do Ano II, que vêm à sua mente. O empertigado Robespierre, o gigantesco e dissoluto Danton, a gélida elegância revolucionária de Saint-Just, o gordo Marat, o Comitê de Salvação Pública, o tribunal revolucionário e a guilhotina são as imagens que vemos mais claramente. Os próprios nomes dos revolucionários moderados que surgem entre Mirabeau e Lafayette (1789) e os líderes jacobinos (1793) desapareceram da memória de todos, exceto dos historiadores. Os girondinos são lembrados apenas como um grupo, e talvez por causa das mulheres politicamente sem importância mas românticas que estavam ligadas a eles - Mme. Roland ou Charlotte Corday. Quem, fora do campo especializado, conhece sequer os nomes de Brissot, Vergniaud, Guadet e do resto? Os conservadores criaram uma imagem duradoura do Terror, da ditadura e da histérica e desenfreada sanguinolência, embora pelos padrões do século XX, e mesmo pelos padrões das repressões conservadoras contra as revoluções sociais, tais como os massacres que se seguiram à Comuna de Paris de 1871, suas matanças em massa fossem relativamente modestas: 17 mil execuções oficiais em 14 meses. Os revolucionários, especialmente na França, viram-na como a primeira república do povo, inspiração de toda a revolta subseqüente. Pois esta não era uma época a ser medida pelos critérios humanos cotidianos.
Isto é verdade. Mas para o francês da sólida classe média que estava por trás do Terror, ele não era nem patológico nem apocalíptico, mas primeiramente e sobretudo o único método efetivo de preservar seu país. Isto a República Jacobina conseguiu, e seu empreendimento foi sobre-humano. Em junho de 1793, 60 dos 80 departamentos franceses estavam em revolta contra Paris; os exércitos dos príncipes alemães estavam invadindo a França pelo norte e pelo leste; os britânicos atacavam pelo sul e pelo oeste: o país achava-se desamparado e falido. Quatorze meses mais tarde, toda a França estava sob firme controle, os invasores tinham sido expulsos, os exércitos franceses por sua vez ocupavam a Bélgica e estavam perto de começar um período de 20 anos de quase ininterrupto e fácil triunfo militar. Ainda assim, por volta de março de 1794, um exército três vezes maior que o anterior era mantido pela metade do custo de março de 1793, e o valor da moeda francesa (ou melhor, do papel-moeda - assignats - que a tinha amplamente substituído) era mantido razoavelmente estável, em contraste marcante com o passado e o futuro. Não é de admirar que Jeanbon St. André, o membro jacobino do Comitê de Salvação Pública que, embora fosse um firme republicano, mais tarde se tornaria um dos mais eficientes prefeitos de Napoleão, olhasse para a França imperial com desdém quando ela cambaleava sob as derrotas de 1812-3. A República do Ano II tinha enfrentado com sucesso crises piores e com menos recursos.
Para estes homens, como de fato para a maioria da Convenção Nacional que no fundo deteve o controle durante todo este período, a escolha era simples: ou o Terror, com todos os seus defeitos do ponto, de vista da classe média, ou a destruição da Revolução, a desintegração do Estado nacional e provavelmente - já não havia o exemplo da Polônia? - o desaparecimento do país. Muito provavelmente, exceto pela desesperada crise da França, muitos deles teriam preferido um regime menos ferrenho e certamente uma economia controlada com menos rigor: a queda de Robespierre levou a uma epidemia de descontrole econômico, fraudes e corrupção que incidentalmente culminou numa inflação galopante e na bancarrota nacional de 1797. Mas mesmo do ponto de vista mais estreito, as perspectivas da classe média francesa dependia das de um Estado nacional centralizado, forte e unificado. E, de qualquer forma, poderia a Revolução que tinha praticamente criado os termos “nação” e “patriotismo" em seus sentidos modernos, abandonar a grande nation ?
A primeira tarefa do regime jacobino foi mobilizar o apoio da massa contra a dissidência dos notáveis e girondinos provincianos e preservar o já mobilizado apoio da massa dos sansculottes de Paris, algumas de cujas exigências por um esforço de guerra revolucionário - recrutamento geral (o levée en masse), terrorismo contra os “traidores" e controle geral dos preços (o ”maximum ") - coincidiam de qualquer forma com o senso comum jacobino, embora suas outras exigências viessem a se mostrar problemáticas. Uma nova constituição um tanto radicalizada, e até então retardada pela Gironda, foi proclamada. De acordo com este nobre documento, todavia acadêmico, dava-se ao povo o sufrágio universal, o direito de insurreição, trabalho ou subsistência, e - o mais significativo - a declaração oficial de que a felicidade de todos era o objetivo do governo e de que os direitos do povo deveriam ser não somente acessíveis, mas também operantes. Foi a primeira instituição genuinamente democrática proclamada por um Estado Moderno. Mais concretamente, os jacobinos aboliram sem indenização todos os direitos feudais remanescentes, aumentaram as oportunidades para o pequeno comprador adquirir as terras confiscadas dos emigrantes e - alguns meses mais tarde - aboliram a escravidão nas colônias francesas, a fim de estimular os negros de São Domingos a lutarem pela República contra os ingleses. Estas medidas obtiveram os mais amplos resultados. Na América, ajudaram a criar o primeiro grande líder revolucionário independente, Toussaint-Louverture.
Na França, estabeleceram essa cidadela inexpugnável de pequenos e médios proprietários camponeses, pequenos artesãos e lojistas, economicamente retrógrados, mas apaixonadamente devotados à Revolução e à República, que tem dominado a vida do país desde então. A transformação capitalista da agricultura e da pequena empresa, a condição essencial para um rápido desenvolvimento econômico, foi reduzida a um rastejo, e com ela a velocidade da urbanização, a expansão do mercado doméstico, a multiplicação da classe trabalhadora e, consequentemente, o ulterior avanço da revolução proletária. Tanto os grandes negócios quanto os movimentos trabalhistas foram longamente condenados a permanecer fenômenos minoritários na França, ilhas cercadas por um oceano de donos de mercearia vendedores de cereais, pequenos proprietários camponeses e donos de cafés.
O centro do novo governo, representando uma aliança de jacobinos e sansculottes, inclinou-se, portanto, claramente para a esquerda. Isto se refletiu no reconstruí do Comitê de Salvação Pública; que rapidamente se transformou no efetivo Ministério da Guerra francês. O Comitê perdeu Danton, um revolucionário poderoso, dissoluto e provavelmente corrupto, mas imensamente talentoso e mais moderado do que aparentava (tinha sido ministro na última administração real), e ganhou Maximilien Robespierre, que se tornou seu membro mais influente. Poucos historiadores têm sido desapaixonados a respeito deste advogado fanático, frio e afetado, com seu senso um tanto excessivo de monopólio privado da virtude, porque ele ainda encarna o terrível e glorioso Ano II a respeito do qual ninguém é neutro. Ele não era uma pessoa agradável; até mesmo os que acham que ele estava certo tendem hoje em dia a preferir o brilhante rigor matemático daquele arquiteto de paraísos espartanos, o jovem Saint-Just. Não foi também um grande homem, e sim muitas vezes limitado. Mas é o único indivíduo projetado pela Revolução (com a exceção de Napoleão) sobre o qual se desenvolveu um culto. .Isto porque, para ele, como para a história, a República Jacobina não era um instrumento para ganhar guerras, mas sim um ideal: o terrível e glorioso reino da justiça e da virtude, quando todos os bons cidadãos fossem Iguais perante a nação, e o povo tivesse liquidado com os traidores. Jean Jacques Rousseau e a cristalina convicção de justiça deram-lhe sua força. Ele não tinha poderes ditatoriais formais nem mesmo um cargo, sendo simplesmente um membro do Comitê de Salvação Pública, que era por sua vez um mero subcomitê da Convenção - o mais poderoso, embora jamais todo-poderoso. Seu poder era o do povo - as massas parisienses; seu terror, o delas. Quando elas o abandonaram, ele caiu.
A tragédia de Robespierre e da República Jacobina foi que eles mesmos foram obrigados a afastar este apoio. O regime era uma aliança entre a classe média e as massas trabalhadoras, mas voltado para a classe média. As concessões jacobinas e sansculottes eram toleradas só porque, e na medida em que, ligavam as massas ao regime sem aterrorizar os proprietários; e dentro da aliança os jacobinos da classe média eram decisivos. Além do mais, as próprias necessidades da guerra obrigavam qualquer governo a centralizar e a disciplinar, às custas da livre democracia direta e local dos clubes e grêmios, as milícias ocasionais e as renhidas eleições livres em que floresciam os sansculottes. O mesmo processo que, durante a Guerra Civil Espanhola de 1936-9, fortaleceu os comunistas à custa dos anarquistas, fortaleceu os jacobinos do tipo Saint-Just à custa dos sansculottes do tipo Hébert. Por volta de 1794, o governo e a política eram monolíticos e dominados ferreamente por agentes diretos do Comitê ou da Convenção - através de delegados en mission - e por um amplo quadro de oficiais e, funcionários jacobinos juntamente com organizações locais do partido. Por fim, as necessidades econ9micas da guerra afastaram o apoio popular. Nas cidades, o controle/de preços e ó racionamento beneficiavam as massas, mas o correspondente congelamento dos salários as prejudicava. No campo, o confisco sistemático de alimentos (que os sansculottes das cidades tinham sido os primeiros a advogar) afastou os camponeses.
As massas portanto recolheram-se ao descontentamento ou a uma passividade confusa e ressentida, especialmente depois do julgamento e execução dos hébertistas, os mais ardentes porta-vozes dos sansculottes. Enquanto isso, os defensores mais moderados da Revolução estavam alarmados com o ataque contra a oposição direitista, a esta altura encabeçada por Danton. Esta facção tinha fornecido refúgio para numerosos escroques, especuladores, operadores do mercado negro e outros elementos corruptos embora acumuladores de capital, e isso tão mais prontamente quanto o próprio Danton incorporava a imagem do livre amante e gastador amoral, falstafiano, que sempre surge no início das revoluções sociais até que seja suplantado pelo rígido puritanismo que invariavelmente vem dominá-lo. Os Dantons da história são sempre derrotados pelos Robespierres ( ou por aqueles que fingem se portar como Robespierres, porque a dedicação rígida e estreita pode obter sucesso onde a boêmia não o consegue. Entretanto, se Robespierre conquistou o apoio dos moderados por eliminar a corrupção, o que se apresentava afinal de contas no interesse do esforço de guerra, as ulteriores restrições à liberdade a à ação de ganhar dinheiro foram mais desconcertantes para o homem de negócios. Finalmente, nenhum grande corpo de opinião gostava das excursões ideológicas um tanto extravagantes do período - as sistemáticas campanhas de descristianização (devidas ao zelo dos sansculottes) e a nova religião cívica de Robespierre, a do Ser Supremo, cheia de cerimônias, que tentava contropor-se aos ateus e levar a termo os preceitos do divino Jean Jacques. E o constante silvo da guilhotina lembrava a todos os políticos que ninguém estava realmente a salvo.
Por volta de abril de 1794, tanto a direita quanto a esquerda tinham ido para a guilhotina, e os seguidores de Robespierre estavam portanto politicamente isolados. Somente a crise da guerra os mantinha no poder. Quando, no final de junho de 1794, os novos exércitos da República demonstraram sua firmeza derrotando decididamente os austríacos em Fleurus e ocupando a Bélgica, o fim estava perto. No Nono Termidor pelo calendário revolucionário (27 de julho de 1794), a Convenção derrubou Robespierre. No dia seguinte, ele, Saint-Just e Couthon foram executados, e o mesmo ocorreu alguns dias depois com 87 membros da revolucionária Comuna de Paris.

IV


O Termidor é o fim da heróica e lembrada fase da Revolução: a fase dos esfarrapados sansculottes e dos corretos cidadãos de bonés vermelhos que viam-se a si mesmos como Brutus e Cato, do período das frases generosas, clássicas e grandiloqüentes e também das mortais "Lyon n'est plus", “Dez mil soldados precisam de sapatos. Pegarás os
sapatos de todos os aristocratas de Estrasburgo e os entregarás prontos para o transporte até os quartéis amanhã às dez horas da manhã". Não foi uma fase cômoda para se viver, pois a maioria dos homens sentia fome e muitos tinham medo, mas foi um fenômeno tão terrível e irreversível quanto a primeira explosão nuclear, e toda história tem sido permanentemente transformada por ela. E a energia que ela gerou foi suficiente para varrer os exércitos dos velhos regimes da Europa como se fossem feitos de palha.
O problema com que se defrontava a classe média francesa no restante do que é tecnicamente descrito como o período revolucionário (1794-9) era como alcançar a estabilidade política e o avanço econômico nas bases do programa liberal de 1789-91. A classe média jamais conseguiu desde então até hoje solucionar este problema de forma adequada, embora a partir de 1870 conseguisse descobrir na república parlamentar uma fórmula exeqüível para a maior parte do tempo. As rápidas alternâncias de regime -Diretório (1795-9), Consulado (1799-1804), Império (1804-14), a restaurada Monarquia Bourbon (1815-30), a Monarquia Constitucional (1830-48), a República (1848-51), e o Império (1852-70) - foram todas tentativas para se manter uma sociedade burguesa evitando ao mesmo tempo o duplo perigo ria república democrática jacobina e do velho regime.
A grande fraqueza dos termidorianos era que eles não desfrutavam de nenhum apoio político (no máximo, tolerância), esprimidos como estavam entre uma revivida reação aristocrática e os pobres sansculottes jacobinos de ParIs, que logo se arrependeram da queda de Robespierre. Em 1795, projetaram uma elaborada constituição de controles e balanços para se resguardarem de ambos, e as periódicas viradas para a direita e a esquerda os mantiveram em precário equilíbrio; mas cada vez mais tinham que depender do exército para dispersar a oposição. Era uma situação curiosamente semelhante à da Quarta República, e o resultado foi semelhante: o governo de um general. Mas o Diretório dependia do exército para algo mais do que a supressão de golpes e conspirações periódicas (várias em 1795, a de 8abeuf em 1796. a do Frutidor em 1797, a do Floreal em 1798 e a da
Pradaria em 1799) . A inatividade era a única garantia segura de poder para um regime fraco e impopular, mas a classe média necessitava de iniciativa e de expansão. O exército resolveu este problema aparentemente insolúvel. Ele conquistou; pagou-se a si mesmo; e, mais do que isto, suas pilhagens e conquistas resgataram o governo. Teria sido surpreendente que, em conseqüência, o mais inteligente e capaz dos líderes do exército, Napoleão Bonaparte, tivesse decidido que o exército podia prescindir totalmente do débil regime civil?
Este exército revolucionário foi o mais formidável rebento da República Jacobina. De um levée en masse de cidadãos revolucionários, ele logo se transformou em uma força de combatentes profissionais, pois não houve recrutamento entre 1793 e 1798, e os que não tinham gosto ou talento para o militarismo desertaram em massa. Portanto, ele reteve as características da Revolução e adquiriu as características do interesse estabelecido, a típica mistura bonapartista. A Revolução deu-lhe sua superioridade militar sem - precedentes, que o soberbo generalato de Napoleão viria a explorar. Ele sempre permaneceu uma espécie de leva improvisada de soldados, no qual recrutas mal-treinados adquiriam treinamento e moral através de velhos e cansativos exercícios, em que era desprezível a disciplina formal de caserna, em que os soldados eram tratados como homens e a regra absoluta de promoção
por méritos (que significavam distinção na batalha) produziu uma hierarquia simples de coragem. Isto e o senso de arrogante missão revolucionária fizeram o exército francês independente dos recursos sobre os quais se apoiavam forças mais ortodoxas. Ele jamais construiu um sistema efetivo de suprimento, pois se apoiava nos campos. Jamais foi amparado por uma indústria de armamentos minimamente adequada a suas necessidades triviais; mas ele venceu suas batalhas tão rapidamente que necessitava de poucas armas: em 1806 a grande máquina do exército prussiano ruiu perante um exército em que uma unidade militar inteira disparou somente 1.400 tiros de canhão. Os generais podiam confiar em uma coragem ofensiva ilimitada e em uma quantidade razoável de iniciativa local. Reconhecidamente, ele também tinha a fraqueza de suas origens. Com a exceção de Napoleão e pouquíssimos outros, seu generalato e estado-maior eram pobres, pois o general revolucionário ou o marechal napoleônico era bem provavelmente um duro primeiro-sargento ou uma espécie de oficial de companhia promovido antes por bravura e liderança do que por inteligência: o Marechal Ney, heróico, mas totalmente imbecil, era o tipo exato.  Napoleão venceu batalhas; seus marechais sozinhos tendiam a perdê-las. Seu precário sistema de suprimento bastava nos países ricos e saqueáveis onde tinha sido desenvolvido: Bélgica, norte da Itália e Alemanha. Nos espaços áridos da Polônia e da Rússia, como veremos, ele ruiu. A ausência total de serviços sanitários multiplicava as baixas: entre 1800
e 1815 Napoleão perdeu 40% de suas forças (embora cerca de um-terço pela deserção), mas entre 90% e 98% destas perdas eram de homens que morreram não no campo de combate mas sim devido a ferimentos, doenças, exaustão e frio. Em resumo, foi um exército que conquistou a Europa em curtas e vigorosas rajadas não apenas porque podia fazê-lo, mas porque tinha que fazê-lo.
Por outro lado, o exército era uma carreira como qualquer outra das muitas abertas ao talento pela revolução burguesa, e os que nele obtiveram sucesso tinham um interesse investido na estabilidade interna como qualquer outro burguês. Foi isto que fez do exército, a despeito de seu jacobinismo embutido, um pilar do governo pós-termidoriano, e de seu líder Bonaparte uma pessoa adequada para concluir a revolução burguesa e começar o regime burguês. O próprio Napoleão Bonaparte, embora cavalheiro de nascimento pelos padrões de sua bárbara ilha natal da Córsega, era um carreirista típico daquela espécie. Nascido em 1769, ambicioso, descontente e revolucionário, subiu vagarosamente na artilharia, um dos poucos ramos do exército real em que a competência técnica era indispensável. Durante a Revolução, e especialmente sob a ditadura jacobina que ele apoiou firmemente, foi reconhecido por um comissário local em um fronte de suma importância -por casualidade, um patrício da Córsega, fato que dificilmente pode ter abalado suas intenções -como um soldado de dons esplêndidos e muito promissor. O Ano II fez dele um general. Sobreviveu à queda de Robespierre, e um dom para o cultivo de ligações úteis em Paris ajudou-o em sua escalada após este momento difícil. Agarrou a sua chance na campanha italiana de 1796, que fez dele o inquestionado primeiro soldado da República, que agia virtualmente independente das autoridades civis. O poder foi meio atirado sobre seus ombros e meio agarrado por ele quando as invasões estrangeiras de 1799 revelaram a fraqueza do Diretório e a sua própria indispensabilidade. Tornou-se primeiro cônsul, depois cônsul vitalício e Imperador. E com sua chegada, como que por milagre, os insolúveis problemas do Diretório se tornaram solúveis. Em poucos anos a França tinha um Código civil, uma concordata com a Igreja e até mesmo o mais significativo símbolo da estabilidade burguesa - um Banco Nacional. E o mundo tinha o seu primeiro mito secular.

Os leitores mais velhos ou os de países antiquados conhecem o mito napoleônico tal como ele existiu durante o século em que nenhuma sala da classe média estava completa sem o seu busto, e talentos panfletários podiam afirmar, mesmo como piada, que ele não era um homem mas um deus-sol. O extraordinário poder deste mito não pode ser adequadamente explicado nem pelas vitórias napoleônicas nem pela propaganda napoleônica, ou tampouco pelo próprio gênio indubitável de Napoleão. Como homem ele era inquestionavelmente muito brilhante, versátil, inteligente e imaginativo, embora o poder o tivesse tornado sórdido. Como general, não teve igual; como governante, foi um planejador, chefe e executivo soberbamente eficiente e um intelectual suficientemente completo para entender e supervisionar o que seus subordinados faziam. Como indivíduo parece ter irradiado um senso de grandeza, mas a maioria dos que deram esse testemunho, por exemplo, Goethe, viram-no no auge de sua fama, quando o mito já o tinha envolvido. Foi, sem sombra de dúvidas, um grande homem e - talvez com a exceção de Lênin - seu retrato é o que a maioria das pessoas razoavelmente instruídas, mesmo hoje, reconheceriam mais prontamente numa galeria de personagens da história, ainda que somente pela tripla marca registrada do tamanho pequeno, do cabelo escovado para a frente sobre atesta e da mão enfiada no colete entreaberto. Talvez não tenha sentido fazer uma comparação dele, em termos de grandeza com candidatos a esse título no século XX.
Pois o mito napoleônico baseia-se menos nos méritos de Napoleão do que nos fatos, então sem paralelo, de sua carreira. Os homens que se tornaram conhecidos por terem abalado o mundo de forma decisiva no passado tinham começado como reis, como Alexandre, ou patrícios, como Júlio César, mas Napoleão foi o "pequeno cabo" que galgou o comando de um continente pelo seu puro talento pessoal. (Isto não foi estritamente verdadeiro, mas sua ascensão foi suficientemente meteórica e alta para tornar razoável a descrição.) Todo jovem intelectual que devorasse livros, como o jovem Bonaparte o fizera, escrevesse maus poemas e romances e adorasse Rousseau poderia, a partir daí, ver o céu como o limite e seu monograma enfaixado em lauréis. Todo homem de negócios daí em diante tinha um nome para sua ambição: ser - os próprios clichês o denunciam - um "Napoleão das finanças" ou da indústria. Todos os homens comuns ficavam excitados pela visão, então sem paralelo, de um homem comum que se tornou major do que aqueles que tinham nascido para usar coroas. Napoleão deu à ambição um nome pessoal no momento em que a dupla revolução tinha aberto o mundo aos homens de vontade. E ele foi mais ainda. Foi um homem civilizado do século XVIII, racionalista, curioso, iluminado, mas também discípulo de Rousseau o suficiente para ser ainda o homem romântico do século XIX. Foi o homem da Revolução, e o homem que trouxe estabilidade. Em síntese, foi a figura com que todo homem que partisse os laços com a tradição podia-se identificar em seus sonhos.
Para os franceses ele foi também algo bem mais simples: o mais bem-sucedido governante de sua longa história. Triunfou gloriosamente no exterior, mas, em termos nacionais, também estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das instituições francesas como existem até hoje. Reconhecidamente, a maioria de suas idéias - talvez todas - foram previstas pela Revolução e o Diretório; sua contribuição pessoal foi fazê-las um pouco mais conservadoras, hierárquicas e autoritárias. Mas seus predecessores apenas previram; ele realizou. Os grandes monumentos de lucidez do direito francês, os Códigos que se tornaram
modelos para todo o mundo burguês, exceto o anglo-saxão, foram napoleônicos: A hierarquia dos funcionários - a partir dos prefeitos, para baixo -, das cortes, das universidades e escolas foi obra sua. As grandes "carreiras" da vida pública francesa, o exército, o funcionalismo público, a educação e o direito ainda têm formas napoleônicas. Ele trouxe estabilidade e prosperidade para todos, exceto para os 250 mil franceses que não retomaram de suas guerras, embora mesmo para os parentes deles tivesse trazido a glória. Sem dúvida, os britânicos se viam como lutadores pela causa da liberdade contra a tirania; mas em 1815 a maioria dos ingleses e.ra mais pobre do que o fora em 1800, enquanto que a maioria dos franceses era quase que certamente mais rica, e ninguém, exceto os trabalhadores assalariados cujo número era insignificante, tinha perdido os substanciais benefícios econômicos da Revolução. Há pouco mistério quanto à persistência do bonapartismo como uma ideologia de franceses apolíticos; especialmente dos camponeses mais ricos, depois da queda do ditador. Foi necessário um segundo Napoleão menor, entre 1851 e 1870, para dissipá-la.
Ele destruíra apenas uma coisa: a Revolução Jacobina, o sonho de igualdade, liberdade e fraternidade, do povo se erguendo na sua grandiosidade para derrubar a opressão. Este foi um mito mais poderoso do que o dele, pois, após a sua queda, foi isto e não a sua memória que inspirou as revoluções do século XIX, inclusive em seu próprio país.

Revolução Francesa – Texto didático[2]

A ruptura revolucionária iniciada em 1789 veio coroar a longa crise do Antigo Regime - termo que designa a organização política e a estrutura social da França no período do absolutismo monárquico. Da morte do Rei-Sol, Luís XIV, em 1715, até 1789, a opinião pública se modificou profundamente em relação ao regime político autoritário em vigor no país. O absolutismo baseado no direito divino dos reis, que já mostrava marcas de decadência desde o reinado de Luís XIV; passou a ser contestado. O mesmo aconteceu a uma hierarquia social que concedia honras e privilégios em função do nascimento e dividia de maneira discriminatória a população segundo ordens ou estados.
Na organização social do Antigo Regime, o primeiro estado era composto pelo clero, que em 1789 representava 0,5% da população francesa e se dividia segundo a origem social em alto clero - originário da nobreza – e baixo clero, proveniente das camadas burguesas e populares; o segundo estado, composto pela nobreza, aproximava-se de 1 ,5% dos habitantes, e o terceiro estado correspondia ao restante da população. Essa estrutura barrava a ascensão até mesmo dos setores burgueses, uma vez que os privilégios, honras e títulos estavam reservados à nobreza e ao alto clero. Apenas alguns juízes e altos funcionários de origem burguesa quebraram essas barreiras, recebendo (ou adquirindo) títulos de nobreza no decorrer dos séculos XVII e XVIII, transmissíveis a seus herdeiros. Eles constituíam a nobreza togada. Para os "plebeus - camponeses e trabalhadores urbanos que representavam a esmagadora maioria da população francesa -, o quadro de desigualdade social do Antigo Regime foi agravado por uma crise econômico-financeira que tornou ainda mais precárias as condições em que viviam. Enquanto alguns manipuladores se aproveitavam da crise, a miséria rondava a população humilde do Estado mais rico da Europa.
            Essa estrutura social rigidamente hierarquizada gerou uma forte desigualdade social e a defesa dos privilégios do primeiro e do segundo estados. No decorrer do século XVIII, essa ordem mostrava-se insustentável: a economia e a vida intelectual eram impulsionadas cada vez mais pelos setores burgueses.
A reavaliação das bases jurídicas e intelectuais do Antigo Regime foi possível, sobretudo devido ao Iluminismo, corrente filosófica representada na França por pensadores como Voltaire, Montesquieu e os enciclopedistas, como Diderot e D' Alembert. Esses intelectuais forneceram elementos para a crítica das estruturas políticas e sociais do absolutismo e a proposta de uma ordem liberal burguesa.
Desse modo, as origens do movimento revolucionário de 1789 devem ser buscadas no conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos no Antigo Regime e as forças sociais ascendentes. Em outras palavras, o individualismo sufocado por uma organização social coercitiva desenvolveu-se a partir do momento em que o terceiro estado rejeitou as ordens, as diferenças, as restrições e, ao mesmo tempo, incentivou a laicização, o acesso à cultura e o reconhecimento de sua competência. Como observou o destacado político e orador francês Honoré-Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau (1749-1791), “chegou o tempo de julgar os homens pelo que têm aqui, sob atesta, entre as sobrancelhas".
Essas palavras de um aristocrata partidário das reformas liberais sintetizam a vontade do terceiro estado de assegurar a qualificação dos indivíduos pelo mérito e não pelo privilégio de nascimento. Por outro lado, parte da juventude aristocrata confraternizou com os intelectuais do terceiro estado nos salões, nas lojas maçônicas e nas academias, abandonando uma posição de superioridade firmada desde a Idade Média.

Maçonaria


A maçonaria teve origem nas corporações de ofício de pedreiros livres e construtores de catedrais da Idade Média. Firmou-se nos séculos XVII e XVIII, agregando rituais de antigas ordens religiosas. Hoje, é a maior das sociedades secretas (ou parcialmente secretas) do planeta, dedicada ao desenvolvimento dos princípios da fraternidade e da filantropia.
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1787: estoura a crise
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Qual era a "situação específica da França"? Como estava o pais às vésperas do movimento revolucionário de 1789?
As causas sociais da ruptura já foram apontadas: a recusa do terceiro estado em continuar a obedecer às regras de uma ordem excludente. Como fatores de ordem econômica, é possível diferenciar as causas financeiras e as econômicas propriamente ditas. As causas financeiras do movimento estão ligadas diretamente ao déficit público, ou seja, o governo gastava mais do que arrecadava, graças sobretudo à má administração e aos privilégios do clero e da nobreza. Somaram-se a essa situação as despesas oriundas da Guerra de Independência dos Estados Unidos, conflito do qual a França participou como aliada da jovem nação contra a poderosa Inglaterra.
As causas econômicas tinham caráter estrutural, isto é, estavam relacionadas com a maneira pela qual se produziam e distribuíam as riquezas do país. Nesse contexto destacaram-se os tratados de comércio e navegação assinados entre França, Estados Unidos da América, Inglaterra, Suécia e outros países. Os tratados tinham como objetivo o aumento do intercâmbio comercial por meio da diminuição das tarifas alfandegárias. Causaram uma
grande insatisfação entre os industriais e comerciantes, que viam tais acordos como responsáveis pela queda da produção e do comércio dos produtos manufaturados franceses.
A crise da produção manufatureira também esteve ligada ao sistema vigente de corporações, modelo produtivo que empregava o trabalho compulsório, bem como fixava a quantidade, a forma e as condições pelas quais as mercadorias deveriam ser produzidas. Tudo isso contribuía para agravar ainda mais a situação do setor, o que desagradava profundamente a burguesia empreendedora.
Outro fator de ordem econômica foi a crise agrícola, oriunda sobretudo do aumento da população. Estima-se que, entre 1715 e 1789, a população da França tenha aumentado entre 8 e 9 milhões de pessoas. O aumento populacional trouxe consigo carência e carestia dos alimentos. A carência ocorreu porque a produção de cereais passou a ser insuficiente para alimentar a população. Tal fato acabou promovendo a carestia dos produtos agrícolas. Resultado: o país passou a conviver com o fantasma da fome.
Finalmente, as causas políticas. Entre os oponentes do governo, que contestavam a forma do regime e a organização do poder, merecem destaque os que atuavam nas instituições do próprio Estado: eram seus servidores do Parlamento.
Na França absolutista, o Poder Legislativo pertencia ao rei, fonte de todos os poderes do Estado, mas o Parlamento tinha o privilégio de reconhecer, julgar ou vetar as leis. Esse órgão funcionava como corte superior de justiça. Era constituído por magistrados, nobres ou enobrecidos, proprietários de seus cargos, que se opuseram aos esforços da monarquia para reparar os abusos e introduzir modernizações que, talvez, dessem ao regime os meios de sobreviver.
A crise estourou em 1787, quando o ministério propôs uma reforma fiscal que, além de impor a igualdade dos impostos, submetia todos os proprietários, nobres ou plebeus, ao pagamento de uma "subvenção territorial". Alegando a defesa da "bolsa do povo", mas, na verdade, buscando salvaguardar suas isenções, o Parlamento recusou-se a reconhecer os decretos fiscais. Como justificativa, declarou que só a nação, representada pelos Estados Gerais - uma assembléia com representantes das três ordens, que não se reunia desde 1614- poderia decidir sobre a criação de novos impostos.
Para fazer valer sua reforma tributária, Luís XVI ( 1754-1793) recorreu a um "leito de justiça". Esta cerimônia, uma das mais importantes do Estado francês desde a Idade Média, era uma espécie de "guerra de rituais" travada no Parlamento de Paris. Numa sessão
especial, cercado por um aparato ameaçador, o rei reafirmava seu poder absoluto, mobilizando toda a complexidade do cerimonial para rebaixar e coagir os magistrados.
A tentativa de coação, entretanto, fracassou. Indignado com o ato real, o Parlamento exilou-se. Necessitado de dinheiro a qualquer preço, o Ministério trocou algumas concessões pela volta dos magistrados.
Sem condições de efetuar a reforma fiscal, orei pediu um empréstimo destinado a corrigir a situação de déficit do Estado. Mais uma vez o Parlamento negou, considerando o pedido ilegal. Por sua vez, Luís XVI declarava: "É legal por- Juramento na sal que eu quero". Era o início de uma guerra entre os poderes, pondo em risco o funcionamento do próprio Estado.
Em 1788, o rei reduziu o número de parlamentares, limitou suas atribuições e criou uma Assembléia política e judiciária. A reforma, porém, chegou tarde demais para salvar o regime. Os parlamentares rebelados exigiram a convocação imediata dos Estados Gerais e a duplicação do número de representantes do terceiro estado. Mesmo com a duplicação, as camadas populares não estavam devidamente representadas.
O processo eleitoral compreendia duas fases. Na primeira, as eleições primárias, os eleitores votavam naqueles que, numa segunda fase, escolheriam os deputados. Só podia participar da eleição primária quem tivesse emprego público, grau universitário, um oficio ou fosse mestre de corporação. Com isso, a plebe estava excluída.
Devido à crise generalizada, a campanha eleitoral e as eleições, realizadas entre janeiro e abril de 1789, ocorreram num clima tenso. A maioria dos deputados eleitos representava a alta burguesia, funcionários, advogados e comerciantes, levando amassa a ir às ruas protestar contra o desprezo aos eleitores.

A Assembléia Nacional Constituinte


Em maio de 1789, tão logo os Estados Gerais se reuniram em Versalhes, manifestaram-se os conflitos entre as três ordens sobre o sistema de votação. A nobreza contava com 300 representantes, o clero com outros 300 e o terceiro estado, com 600. Enquanto o clero e a nobreza exigiam o "voto por ordem". o terceiro estado exigia o “voto por cabeça". Foi a primeira vitória popular: apoiado por dissidentes das outras ordens, e especialmente pelo baixo clero, o terceiro estado fez valer sua posição. Em junho, essa nova maioria se reuniu em separado no "Salão da Pela" (um jogo parecido com o tênis) e jurou permanecer unida até dar à França uma constituição. Diante das manifestações dos parisienses em apoio a essa atitude, orei viu-se obrigado a convidar o clero e a nobreza a se unirem aos representantes do povo. Desse modo, em 9 de julho de 1789, os Estados Gerais se transformaram numa Assembléia Nacional Constituinte.
Essa decisão incitou o rei a tomar medidas mais drásticas, entre as quais a demissão do ministro Jacques Necker (1732-1804), conhecido por suas posições reformistas. Ao saberem do afastamento do ministro patriota, as massas parisienses mobilizaram-se e passaram a controlar as ruas da capital. Em 14 de julho de 1789, o povo tomou a Bastilha, fortaleza e prisão símbolo do regime absolutista, e libertou os presos que ali se encontravam. A tomada da Bastilha foi um marco decisivo para o movimento revolucionário, pois forçou o monarca a reconhecer o poder dos deputados constituintes. Estes retomaram imediatamente seus trabalhos, que se estenderam até 1791.
Em função das agitações parisienses, o movimento revolucionário espalhou-se pelo campo. Na luta pelo fim da servidão e dos direitos feudais, os camponeses invadiam os castelos da aristocracia e em muitos casos massacravam seus proprietários. Paralelamente, corriam boatos da vingança terrível que os nobres exerceriam sobre campesinato. Essas notícias ocasionaram uma onda de pânico que se expandiu pela maioria das províncias do país, entre fins de julho e princípio de agosto de 1789, que ficou conhecida como Grande Medo (La Grande Peur).
Entre as primeiras medidas aprovadas pela Assembléia estavam a abolição dos direitos feudais - de maneira gradual e mediante amortização -, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o confisco das terras da Igreja. Em 1790, foi adotada a Constituição Civil do Clero, tentativa de subordinar a Igreja Católica ao Estado. De modo geral, as medidas golpeavam os privilégios da nobreza e do clero, mas não o trono. A proposta de limitação do poder do soberano por meio do estabelecimento de três poderes -executivo, legislativo e judiciário - constituía uma tentativa de conciliar a instituição real herdada do passado com as aspirações de modernização política da França.
A Constituição de 1791, de natureza individualista e liberal, estabeleceu que todos eram iguais perante a lei. Todavia, alguns eram "mais iguais do que outros", uma vez que o texto estabeleceu o sufrágio censitário, com a distinção entre cidadãos ativos e passivos. Ativos eram aqueles que votavam de acordo com a sua renda, ou seja, gente de posses, os ricos. Passivos eram os não votantes, como os trabalhadores, os desempregados, as mulheres, enfim, os excluídos. Assim, a Constituição de 1791 mostrou que foi o reflexo das aspirações de uma burguesia moderada que tomou a seu cargo a administração dos departamentos e municípios franceses.
Mas esse projeto moderado não tinha muita sustentação. Por um lado, os setores populares urbanos queriam avançar com o processo revolucionário. Por outro lado, muitos nobres haviam-se refugiado no exterior e se organizavam para destruir pelas armas todas as conquistas da revolução. Os emigrados tinham o apoio de Estados absolutistas como a Áustria e a Prússia, que viam na França constitucional um exemplo perigoso.
A situação agravou-se em junho de 1791, quando Luís XVI e a família real tentaram fugir para a Áustria, terra natal da rainha Maria Antonieta ( 1755-1793). A comitiva foi presa na cidade de Varennes e reconduzida a Paris.
Em agosto de 1791 , os governantes da Áustria e da Prússia lançaram a Declaração de Pillnitz, que afirmava a necessidade da restauração da ordem e dos direitos reais na França como um projeto de interesse comum de todos os Estados europeus. Como era de esperar, tal declaração desagradou os franceses, que a viam como uma interferência nos assuntos internos do país.
Em setembro de 1791 , depois de elaborar a Carta Magna francesa, a Constituinte dissolveu-se. A Assembléia Legislativa, que a substituiu, teve de conviver com a ameaça de intervenção externa e com uma séria crise econômica que acabou gerando especulações e um processo inflacionário. Tudo isso reforçou a influência dos setores mais radicais no Legislativo. Em abril de 1792, a Assembléia declarou guerra à Áustria e à Prússia. Como os exércitos desses dois países conseguiram atravessar a fronteira e chegaram a ameaçar a cidade de Paris, a ala radical proclamou a "pátria em perigo" e distribuiu armas à população parisiense. O controle da capital passou à Comuna de Paris, que exigiu da Assembléia o afastamento do rei. Não sendo atendidos, os parisienses atacaram em 10 de agosto o palácio real, detendo o soberano e obrigando o Legislativo a suspendê-lo de suas funções. Esvaziada de seu poder, a Assembléia convocou a eleição de uma Convenção Nacional.
Em 20 de setembro, o exército popular derrotou os austríacos e prussianos na batalha de Valmy. Como prevalecia a crença de que o rei e seus adeptos haviam colaborado com os estrangeiros, Luís XVI foi declarado inimigo da revolução. No mesmo dia, a Convenção Nacional iniciou seu governo, decretando o fim da monarquia e proclamando em 21 de setembro a República. Terminou desse modo a fase inicial do movimento revolucionário, na qual a burguesia urbana e os movimentos camponeses investiram basicamente contra os nobres.A fase seguinte da Revolução Francesa, dirigida pela Convenção, veria novos alinhamentos políticos e novos confrontos.

Direita ou esquerda?


Os conceitos de direita e esquerda até hoje utilizados têm origem nas reuniões da Assembléia Constituinte e dos órgãos que a ela sucederam. Em 1789, os contra-revolucionários, aristocratas e absolutistas, que se sentavam à direita no plenário, tornaram-se conhecidos como "a direita"; os revolucionários ou patriotas ocupavam os lugares à esquerda. Mais tarde esses termos designariam outros grupamentos políticos e a disposição dos lugares na Assembléia daria origem a outras denominações. Os "montanheses", por exemplo, defensores da participação popular no processo revolucionário e da defesa nacional, era um setor da "esquerda" que costumava se assentar no alto do plenário. Ao centro estava a "planície" ou o "pântano", grupo assim designado por ocupar os lugares mais baixos do plenário e por suas posições políticas "movediças", sem princípios, definidas de acordo com os acontecimentos.
A "esquerda" revolucionária dividia-se em dois sub-grupos, integrados por membros do Clube dos jacobinos e do Clube dos Cordeliers. Não eram os únicos clubes politicamente comprometidos: muitos projetos e mobilizações da França revolucionária nasceram nesse tipo de associações, que eram focos da vida pública.
Entre os clubes revolucionários, o dos jacobinos foi o mais influente, a ponto de criar filiais em quase todas as províncias. Os jacobinos permitiam que deputados, escritores, jornalistas e todos aqueles que podiam pagar suas altas mensalidades participassem das reuniões. O direito de participação e discussão, porém, era vetado às mulheres, que não podiam estar presentes sequer como ouvintes.
Com o aprofundamento da revolução. Divergências entre os jacobinos deram origem ao grupo dos girondinos. O nome faz referência à província francesa da Gironda,de onde provinham muitos integrantes dessa tendência que passou a defender os interesses da alta burguesia e das correntes liberais. Mais popular que a associação dos jacobinos. o Clube dos Cordeliers tinha em sua composição representantes da população mais pobre dos subúrbios de Paris e, inclusive, mulheres. A mensalidade dos Cordeliers era bem acessível. equivalente ao preço de um pão de 460 gramas no período revolucionário. Assim, o clube acabou se tornando ponto de encontro dos sans-culottes (grupo formado por pequenos comerciantes, artesãos e assalariados) que ali discutiam questões como a necessidade de vigilância sobre os eleitos e os funcionários públicos administrativos. Entre as principais figuras do Clube dos Cordeliers podem ser mencionados Georges Oanton ( 1759-1794), Jean-Paul Marat ( 1743-1793), Camille Desmoulins ( 1760-1794) e Jacques-René Hébert (1757-1794). Todos eles tiveram uma participação decisiva na segunda fase da Revolução Francesa. que proclamou a República e executou Luís XVI e a rainha Maria Antonieta.
Deve-se dizer que as posições de "direita" e "esquerda", longe de serem imutáveis, variaram com o próprio avanço da revolução. Em 1792, os porta-vozes da monarquia constitucional já haviam sido descartados. Assim, a defesa de posições moderadas ou conciliadoras, que interessavam à burguesia, coube a quadros políticos que se viam como defensores sinceros das concepções republicanas, pouco a pouco empurrados para a "direita".

A república jacobina e o terror


A proclamação da República marcou o Ano l do novo calendário francês, bem como uma nova fase da Revolução Francesa. O poder foi exercido pela Convenção Nacional, estabeleci da em setembro de 1792. Coube-lhe decidir sobre importantes medidas: elaborar uma nova Constituição, julgar e executar o rei Luís XVI - o que ocorreu em 21 de janeiro de 1793- e traçar estratégias para fazer frente às coligações estrangeiras, apoiadas pelos nobres emigrados.
O calendário republicano, oficialmente introduzido em 1793, era dividido em 12 meses de 30 dias. Os meses tinham nomes relacionados aos ciclos agrícolas e da natureza. Os 5 dias restantes, entre 17 e 21 de setembro, foram considerados feriados públicos e denominados "dias dos sans-culottes".
De início, a hegemonia na Convenção pertenceu aos girondinos, então alinhados "à direita", interessados em conter o avanço das massas. Mas esse projeto fracassou devido às próprias dificuldades do processo revolucionário. Após a morte de Luís XVI, formavam-se novas coligações européias contra a França.Além disso, a contra-revolução parecia ganhar força no próprio país com a revolta camponesa na Vendéia (região situada a oeste da França), inicialmente em protesto pelo alistamento obrigatório nos exércitos republicanos. Para enfrentar a ameaça interna, a Convenção criou em abril o Comitê de Salvação Pública, mas os sans-culottes foram mais longe: nas jornadas de maio e junho do ano I ( 1793), os parisienses reivindicaram a democracia direta. A mobilização na capital resultou na expulsão de alguns líderes girondinos da Convenção e favoreceu a ascensão dos jacobinos. Os “montanheses" Maximilien Robespierre ( 1758-1794), Louis de Saint-just ( 1767-1794), Marat, Danton e Hébert assumiram o poder.
O Ano II iniciou-se com a República jacobina e uma Constituição mais radical e democrática do que a anterior. O novo governo suprimiu os direitos feudais que restavam, facilitando a aquisição de terras pelo pequeno produtor, tabelou gêneros de primeira necessidade, fixou salários e instituiu a escola primária pública, obrigatória e gratuita. Além disso, foram estabelecidos o sufrágio universal (mas apenas para os homens), o direito de greve e o direito à subsistência: nenhuma pessoa deveria viver em estado de miséria.As mulheres alcançaram maior participação na vida pública, participando de clubes, manifestações e chegando a se alistar na Guarda Nacional e nos exércitos. Mas no momento de maior impulso revolucionário, entre 1792 e 1794, foram novamente confinadas ao seu papel de mães e donas-de-casa.
O principal líder do governo revolucionário foi Robespierre, um dos jacobinos mais populares entre os sans-culottes devido a suas posições radicais em relação às questões de ordem política e à sua reconhecida honestidade pessoal.
Robespierre assumiu um Estado à beira do colapso - em guerra contra uma coligação integrada pela Inglaterra, Áustria, Prússia, Holanda, Espanha, Rússia e Sardenha, com revoltas populares na Vendéia e em plena crise financeira e social - e sob pressão dos sans-culottes, que exigiam medidas que barrassem a contra revolução.
Para fazer frente à crise generalizada, ele e outros líderes jacobinos estabeleceram um regime sem base constitucional, que se estendeu de outubro de 1793 a julho de 1794 e se tornou conhecido como Terror. Nesse período, o círculo restrito do Comitê de Salvação Pública exerceu o poder de maneira implacável. Como observou Saint-Just, presidente da Convenção e membro do Comitê de Salvação Pública,"[...] É preciso punir não apenas os traidores, mas até os indiferentes; punir quem quer que seja passivo na República e não faça nada por ela; pois desde que o povo francês manifestou sua vontade, tudo que se opõe a ele está fora da soberania; [...] é seu inimigo. [. ..]"
O regime implantado por Robespierre se alicerçou numa aliança entre os grupos intermediários (que correspondiam às novas camadas sociais, políticas e profissionais emergentes na época, das quais faziam parte a pequena burguesia) e as massas trabalhadoras. Mas essa frágil sustentação não demorou a ruir. De um lado, Hébert e outros líderes dos sans-culottes queriam manter as massas populares da capital como um ator político autônomo. De outro lado, temendo o confisco de seus bens e desejosa de liberdade nos negócios, a alta burguesia iniciou uma campanha pela anistia geral, conduzida na Convenção por líderes como Danton e Desmoulins.
Robespierre golpeou primeiro a extrema esquerda, prendendo Hébert em março de 1974 e levando-o à guilhotina pouco depois. A partir daí, as massas populares afastaram-se daquele que deveria ser o governo da "salvação pública".
Em seguida foi a vez da "direita". No final de março, Danton e Desmoulins foram presos. O grande tribuno defendeu-se valorosamente em seu julgamento, mas foi guilhotinado em abril. Robespierre investia contra todos os adversários mas sem dispor de uma base de apoio efetivo, após o retraimento da plebe de Paris; essa circunstância favoreceu a união de todos os que se sentiam ameaçados pelo líder jacobino. Em julho de 1794 – o mês Termidor do calendário republicano – Robespierre e Saint-just foram presos e executados.

A revolução em refluxo


Conhecido como Reação Termidoriana, o golpe de Estado marcou o fim da participação popular no movimento revolucionário. A alta burguesia voltou ao poder. O novo governo, denominado Diretório (1795-1799), autoritário e fundamentado numa aliança com o exército, tratou de elaborar uma nova Constituição capaz de manter a sociedade burguesa livre de uma dupla ameaça: a República Democrática jacobina e o Antigo Regime.
Apesar disso, a burguesia republicana enfrentou em 1796 a reação dos igualitaristas radicais e dos jacobinos ressurgentes. Liderado por Graco Babeuf ( 1760-1797), esse movimento de inspiração socialista ficou conhecido como Conspiração dos Iguais. Babeuf propunha uma "comunidade dos bens e do trabalho", como forma de alcançar a igualdade efetiva entre os homens. A revolta foi esmagada pelo Diretório, que decretou a pena de morte contra todos os participantes da conspiração.
Além das questões internas, o Diretório teve que enfrentar ameaças externas. Assim, o exército republicano francês lutou na Europa Ocidental e também na Suíça, em Malta, no Egito e na Síria. Nessas campanhas, destacou-se afigura de Napoleão Bonaparte, um talentoso oficial do exército francês que, aos 25 anos, já era general de brigada e herói nacional, graças sobretudo a suas vitórias na Itália. O sucesso alcançado por Napoleão acabou colocando-o à frente do Estado francês, quando em 9 de novembro de 1799- 18 Brumário pelo calendário republicano -um golpe de Estado entregou o poder a três cônsules: Bonaparte, Sieyés e Roger Ducos. Era o início de uma nova fase do processo iniciado em 1789.

Questões de Vestibular




1. (Fgv 2005)


HISTOIRE: une terre, des hommes.França: Magnard.

A caricatura acima mostra a situação das camadas sociais na sociedade francesa de antes da Revolução de 1789.

a) Que grupos e que relações sociais estão representados na caricatura?
b) Antes do movimento revolucionário, quais eram as principais críticas do povo em relação às camadas dominantes?
c) Que classe social liderou a Revolução e que transformações ocorreram no período mais radical do processo revolucionário?

 2. (Puc-rio 2005) Em princípios de 1789, a França era uma sociedade do Antigo Regime. A crise dessa estrutura manifestou-se ao longo desse ano, dando início a um período de transformações que se estendeu por dez anos: a Revolução Francesa.

a) INDIQUE 3 (três) características de natureza político-social da sociedade do Antigo Regime na França.
b) INDIQUE 3 (três) transformações operadas durante o 1° momento da Revolução Francesa - a "Era das Instituições" (1789 -1792) - que evidenciam o caráter revolucionário dessa experiência histórica.

 3. (Ufscar 2003) Os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos. As distinções sociais só podem basear-se na utilidade pública.
("Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", França, 1789)

a) Relate o contexto histórico em que foi criado o documento mencionado.
b) Apresente um exemplo de um outro documento, criado a partir deste.

 4. (Ufv 2004) Na noite de 14 de julho de 1789, em Paris, Luís XVI recebeu do duque de La Rochefoucauld-Liancourt a notícia da queda da Bastilha e da deserção das tropas reais frente ao ataque popular. O famoso diálogo que se travou entre o rei e seu mensageiro é breve e revelador. O rei, segundo consta, exclamou:
"Isto é uma revolta"; e Liancourt corrigiu-o: "Não, Senhor, isto é uma revolução".
(Adaptado de: ARENDT, Hannah. "Da Revolução". São Paulo: Ática; Brasília: Editora da UNB,1988, p.38.)

Com base nesse diálogo e nos seus conhecimentos sobre a Revolução Francesa, responda:
a) Por que os populares investiram contra a Bastilha?
b) Diferencie, do ponto de vista conceitual, "revolta" e "revolução".

 5. (Unesp 2004) Compare os dois textos seguintes e responda.

Em todos os lugares havia calma. Nenhum movimento, nem temor ou aparência de movimento no Reino havia que pudessem interromper ou se opor aos meus projetos.
(Memórias de Luís XIV para o ano de 1661.)

Para nos mantermos livres, cumpre-nos ficar incessan-temente em guarda contra os que governam: a excessiva tranqüilidade dos povos é sempre o pregoeiro de sua servidão.
(J. P. Marat. As cadeias da escravidão, 1774.)

a) A que regime político predominante na Idade Moderna européia os dois textos, de formas diferentes, se referem?
b) O texto de Marat apresenta uma noção de cidadania elaborada pela reflexão política do Século das Luzes. De que forma a Revolução Francesa do século XVIII foi a expressão desta nova concepção política?



A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL[3]


Tais obras, quaisquer que sejam seus funcionamentos causas e conseqüência, têm infinito mérito  e dão grande crédito aos talentos deste homem mui engenhoso e útil, que terá o mérito de onde quer que vá fazer com que os homens pensem... Livre-se desta indiferença estúpida, sonolenta e preguiçosa, desta negligência indolente  que prende os homens aos mesmos caminhos de seus antepassado, sem indagação sem raciocínio e sem ambição e com certeza você estará jazendo o bem. Que seqüência de idéias que espírito de aplicação. que massa e poder de esforço brotaram em lodos os caminhos da vida das obras de homens como Brindley, Walt, Priestley, ArkwrighI... Em que caminho da vida pode estar um homem que não se sinta estimulado ao ver a máquina a vapor de WaII?
Arthur Young, Viagens na Inglaterra e no País de Gales

Desta vala imunda a maior corrente da indústria humana flui para fertilizar o mundo todo. Deste esgoto imundo jorra ouro puro. Aqui a humanidade atinge o seu mais completo desenvolvimento e sua maior brutalidade aqui a civilização faz milagres e o homem civilizado torna-se quase um selvagem.
  1. de Toqueville a respeito de Manchester em 1835

I

Comecemos com a revolução industrial, isto é, com a Inglaterra. Este, à primeira vista, é um ponto de partida caprichoso, pois as repercussões desta revolução não se fizeram sentir de uma maneira óbvia e inconfundível - pelo menos fora da Inglaterra - até bem o final do nosso período; certamente não antes de 1830, provavelmente não antes de 1840 ou por essa época. Foi somente na década de 1830 que a literatura e as artes começaram a ser abertamente obcecadas pela ascensão da sociedade capitalista, por um mundo no qual todos os laços sociais se desintegravam exceto os laços entre o ouro e o papel-moeda (no dizer de Carlyle). A Comédie Humaine de Balzac, o mais extraordinário monumento literário dessa ascensão, pertence a esta década. Até 1840 a grande corrente de literatura oficial e não oficial sobre os efeitos sociais da revolução industrial ainda não começara a fluir: os Blue Books e as averiguações estatísticas na Inglaterra, o Tableau de I'état physique et moral des ouyriers de Villermé, a obra de Engels A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra o trabalho de Ducpetiaux na Bélgica, e dezenas e dezenas de observadores surpresos ou assustados da Alemanha à Espanha e EUA. Só a partir da década de 1840 é que o proletariado, rebento da revolução industrial, e o comunismo, que se achava agora ligado aos seus movimentos sociais - o espectro do Manifesto Comunista -, abriram caminho pelo continente. O próprio nome de revolução industrial reflete seu impacto relativamente tardio sobre a Europa. A coisa existia na Inglaterra antes do termo. Os socialistas ingleses e franceses - eles próprios um grupo sem antecessores - só o inventaram por volta da década de 1820, provavelmente por analogia com a revolução política na França.
Ainda assim, seria de bom alvitre considerá-la primeiro, por duas razões. Primeiro, porque de fato ela "explodiu" - usando a expressão como um axioma - antes que a Bastilha fosse assaltada; e, segundo, porque sem ela não podemos entender o vulcão impessoal da história sobre o qual nasceram os homens e acontecimentos mais, importantes de nosso período e a complexidade desigual de seu ritmo.
O que significa a frase "a revolução industrial explodiu"? Significa que a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços. Este fato é hoje tecnicamente conhecido pelos economistas como a "partida para o crescimento auto-sustentável". Nenhuma sociedade anterior tinha sido capaz de transpor o teto que uma estrutura social pré-industrial, uma tecnologia e uma ciência deficientes, e consequentemente o colapso, a fome e a morte periódicas, impunham à produção. A "partida" não foi logicamente um desses fenômenos que, como os terremotos e os cometas, assaltam o mundo não técnico de surpresa. Sua pré-história na Europa pode ser traçada, dependendo do gosto do historiador e do seu particular interesse, até cerca do ano 1000 de nossa era, se não antes, e tentativas anteriores de alçar vôo, desajeitadas como as primeiras experiências dos patinhos, foram exaltadas com o nome de "revolução industrial" - no século XIII, no XVI e nas últimas décadas do XVII. A partir da metade do século XVIII, o processo de acumulação de velocidade para partida é tão nítido que historiadores mais velhos tenderam a datar a revolução industrial de 1760. Mas uma investigação cuidadosa levou a maioria dos estudiosos a localizar como decisiva a década de 1780 e não a de 1760, pois foi então que, até onde se pode distinguir, todos os índices estatísticos relevantes deram uma guinada repentina, brusca e quase vertical para a "partida". A economia, por assim dizer, voava.
Chamar este processo de revolução industrial é lógico e está em conformidade com uma tradição bem estabelecida, embora tenha sido moda entre os historiadores conservadores - talvez devido a uma certa timidez face a conceitos incendiários - negar sua existência e substituí-la por termos banais como "evolução acelerada”. Se a transformação rápida, fundamental e qualitativa que se deu por volta da década de 1780 não foi uma revolução, então a palavra não tem qualquer significado prático. De fato, a revolução industrial não foi um episódio com um princípio e um fim. Não tem sentido se perguntar quando se “completou”, pois sua essência foi a de que a mudança revolucionária se tornou norma deste então. Ela ainda prossegue; quando muito podemos perguntar quando as transformações econômicas chegaram longe o bastante para estabelecer uma economia substancialmente industrializada, capaz de produzir, em termos amplos, tudo que desejasse dentro dos limites das técnicas disponíveis, uma "economia industrial amadurecida" para usarmos o termo técnico. Na Grã-Bretanha, e portanto no mundo, este período de industrialização inicial provavelmente coincide quase que exatamente com o período de que trata este livro, pois se ele começou com a "partida" na década de 1780, pode-se dizer com certa acuidade que terminou com a construção das ferrovias e da indústria pesada na Grã-Bretanha na década de 1840. Mas a revolução mesma, o "ponto de partida", pode provavelmente ser situada, com a precisão possível em tais assuntos, em certa altura dentro dos 20 anos que vão de 1780 a 1.800: contemporânea da Revolução Francesa, embora um pouco anterior a ela.
Sob qualquer aspecto, este foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades. E foi iniciado pela Grã Bretanha. É evidente que isto não foi acidental. Se tivesse que haver uma disputa pelo pioneirismo da revolução industrial no século XVIII, só haveria de fato um concorrente a dar a largada: o grande avanço comercial e industrial de Portugal à Rússia, fomentado pelos inteligentes e nem um pouco ingênuos ministros e servidores civis de todas as monarquias iluminadas da Europa, todos eles tão preocupados com o crescimento econômico quanto os administradores de hoje em dia. Alguns pequenos Estados e regiões de fato se industrializaram de maneira bem impressionante, como por exemplo a Saxônia e a diocese de Liège, embora seus complexos industriais fossem muito pequenos e localizados para exercer a mesma influência revolucionária mundial dos complexos britânicos. Mas parece claro que até mesmo antes da revolução a Grã-Bretanha já estava, no comércio e na produção per capita, bastante à frente de seu maior competidor em potencial, embora ainda comparável a ele em termos de comércio e produção totais.
Qualquer que tenha sido a razão do avanço britânico, ele não se deveu à superioridade tecnológica e cientifica. Nas ciências naturais os franceses estavam seguramente à frente dos ingleses, vantagem que a Revolução Francesa veio acentuar de forma marcante, pelo menos na matemática e na física, pois ela incentivou as ciências na França enquanto que a reação suspeitava delas na Inglaterra. Até mesmo nas ciências sociais os britânicos ainda estavam muito longe daquela superioridade que fez - e em grande parte ainda faz - da economia um assunto eminentemente anglo-saxão; mas a revolução industrial colocou-os em um inquestionável primeiro lugar. O economista da década de 1780 lia Adam Smith, mas também - e talvez com mais proveito - os fisiocratas e os contabilistas fiscais franceses, Quesnay, Turgot, Dupont de Nemours, Lavoisier, e talvez um ou dois italianos. Os franceses produziram inventos mais originais, como o tear de Jacquard ( 1804) - um aparelho mais complexo do que qualquer outro projetado na Grã-Bretanha - e melhores navios. Os alemães possuíam instituições de treinamento técnico, como a Bergakademie prussiana, que não tinham paralelo na Grã-Bretanha, e a Revolução Francesa criou um corpo único e impressionante, a Ecole Polytechnique. A educação inglesa era uma piada de mau gosto, embora suas deficiências fossem um tanto compensadas pelas duras escolas do interior e pelas universidades democráticas, turbulentas e austeras da Escócia calvinista, que lançavam uma corrente de jovens racionalistas, brilhantes e trabalhadores, em busca de uma carreira no sul do país: James Watt, Thomas Telford, loudon McAdam, James Mill. Oxford e Cambridge, as duas únicas universidades inglesas, eram intelectualmente nulas, como o eram também as sonolentas escolas públicas, com a exceção das Academias fundadas pelos Dissidentes" (Dissenters) que foram excluídas do sistema educacional (anglicano). Até mesmo as famílias aristocráticas que desejavam educação para seus filhos confiavam em tutores e universidades escocesas. Não havia qualquer sistema de educação primária antes que o Quaker Lancaster (e, depois dele, seus rivais anglicanos) lançasse uma espécie de alfabetização em massa, elementar e realizada por voluntários, no princípio do século XIX, incidentalmente selando para sempre a educação inglesa com controvérsias sectárias. Temores sociais desencorajavam a educação dos pobres.
Felizmente poucos refinamentos intelectuais foram necessários para se fazer a revolução industrial. Suas invenções técnicas foram bastante modestas, e sob hipótese alguma estavam além dos limites de artesãos que trabalhavam em suas oficinas ou das capacidades construtivas de carpinteiros, moleiros e serralheiros: a lançadeira, o tear, a fiadeira automática. Nem mesmo sua máquina cientificamente mais sofisticada, a máquina a vapor rotativa de James Watt (1784), necessitava de mais conhecimentos de física do que os disponíveis então há quase um século - a teoria adequada das máquinas a vapor só foi desenvolvida ex post facto pelo francês Carnot na década de 1820 - e podia contar com várias gerações de utilização, prática de máquinas a vapor, principalmente nas minas. Dadas as condições adequadas, as inovações técnicas da revolução industrial praticamente se fizeram por si mesmas, exceto talvez na indústria química. Isto não significa que os primeiros industriais não estivessem constantemente interessados na ciência e em busca de seus benefícios práticos.

Mas as condições adequadas estavam visivelmente presentes na Grã-Bretanha, onde mais de um século se passara desde que o primeiro rei tinha sido formalmente julgado e executado pelo povo e desde que o lucro privado e o desenvolvimento econômico tinham sido aceitos como os supremos objetivos da política governamental. A solução britânica do problema agrário, singularmente revolucionária, já tinha sido encontrada na prática. Uma relativa quantidade de proprietários com espírito comercial já quase monopolizava aterra, que era cultivada por arrendatários empregando camponeses sem terra ou pequenos agricultores. Um bocado de resquícios, verdadeiras relíquias da antiga economia coletiva do interior, ainda estava para ser removido pelos Decretos das Cercas (Enclosure Acts) e as transações particulares, mas quase praticamente não se podia falar de um "campesinato britânico" da mesma maneira que um campesinato russo, alemão ou francês. As atividades agrícolas já estavam predominantemente dirigidas para o mercado; as manufaturas de há muito tinham-se disseminado por um interior não feudal. A agricultura já estava preparada para levar a termo suas três funções fundamentais numa era de industrialização: aumentar a produção e a produtividade de modo a alimentar uma população não agrícola em rápido crescimento; fornecer um grande e crescente excedente de recrutas em potencial para as cidades e as indústrias; e fornecer um mecanismo para o acúmulo de capital a ser usado nos setores mais modernos da economia. (Duas outras funções eram provavelmente menos importantes na Grã-Bretanha: a criação de um mercado suficientemente grande entre a população agrícola - normalmente a grande massa do povo -e o fornecimento de um excedente de exportação que contribuísse para garantir as importações de capital.) Um considerável volume de capital social elevado - o caro equipamento geral necessário para toda a economia progredir suavemente –j á estava sendo criado, principalmente na construção de uma frota mercante e de facilidades portuárias e na melhoria das estradas e vias navegáveis. A política já estava engatada ao lucro. As exigências específicas dos homens de negócios podiam encontrar a resistência de outros interesses estabelecidos; e, como veremos, os proprietários rurais haviam de erguer uma última barreira para impedir o avanço da mentalidade industrial entre 1795 e 1846. No geral, todavia, o dinheiro não só falava como governava. Tudo que os industriais precisavam para serem aceitos entre os governantes da sociedade era bastante dinheiro.
O homem de negócios estava sem dúvida engajado no processo de conseguir mais dinheiro, pois a maior parte do século XVIII foi para grande parte da Europa um período de prosperidade e de cômoda expansão econômica; o verdadeiro pano de fundo para o alegre otimismo do dr. Pangloss, de Voltaire. Pode-se muito bem argumentar que mais cedo ou mais tarde esta expansão, acompanhada de uma pequena inflação, teria empurrado algum pais através do portal que separa a economia pré-industrial da industrial. Mas o problema não é tão simples. A maior parte da expansão industrial do século XVIII não levou de fato e imediatamente, ou dentro de um futuro previsível, a uma revolução industrial, isto é, à criação de um "sistema fabril" mecanizado que por sua vez produz em quantidades tão grandes e a um custo tão rapidamente decrescente aponto de não mais depender da demanda existente, mas de criar o seu próprio mercado. Por exemplo, a indústria de construções, ou as inúmeras indústrias de pequeno porte produtoras de objetos de metal para uso doméstico - alfinetes, vasilhas, facas, tesouras etc. -, na Inglaterra central e na região de Yorkshire, expandiram-se grandemente neste período, mas sempre em função do mercado existente. Em 1850, embora tivessem produzido bem mais do que em 1750, o fizeram substancialmente de maneira antiquada. O que era necessário não era um tipo qualquer de expansão, mas sim o tipo especial de expansão que produziu Manchester ao invés de Birmingham.
Além disso, as revoluções industriais pioneiras ocorreram em uma situação histórica especial, em que o crescimento econômico surge de um acúmulo de decisões de incontáveis empresários e investidores particulares, cada um deles governado pelo primeiro mandamento da época, comprar no mercado mais barato e vender no mais caro. Como poderiam eles descobrir que o lucro máximo devia ser detido com a organização da revolução industrial e não com atividades comerciais mais conhecidas (e mais lucrativas no passado)? Como poderiam saber, o que ninguém sabia até então, que a revolução industrial
produziria uma aceleração Impar na expansão dos seus mercados? Dado que as principais bases sociais de uma sociedade industrial tinham sido lançadas, como quase certamente já acontecera na Inglaterra de fins do século XVIII, duas coisas eram necessárias: primeiro, uma indústria que já oferecesse recompensas excepcionais para o fabricante que pudesse expandir sua produção rapidamente, se necessário através de inovações simples e razoavelmente baratas, e, segundo, um mercado mundial amplamente monopolizado por uma única nação produtora.
Estas considerações se aplicam em certos aspectos a todos os países nessa época. Por exemplo, em todos eles a dianteiro no crescimento industrial foi tomada por fabricantes de mercadorias de consumo de massa - principalmente, mas não exclusivamente, produtos têxteis - porque o mercado para tais mercadorias já existia e os homens de negócios podiam ver claramente suas possibilidades de expansão. Sob outros aspectos, entretanto, eles se aplicam somente à Grã-Bretanha, pois os industriais pioneiros enfrentaram os problemas mais difíceis. Uma vez iniciada a industrialização na Grã-Bretanha, outros países podiam começar a gozar dos benefícios da rápida expansão econômica que a revolução industrial pioneira estimulava. Além do mais, o sucesso britânico provou o que se podia conseguir com ela, a técnica britânica podia ser imitada, o capital e a habilidade britânica podiam ser importados. A indústria têxtil saxônica, incapaz de criar seus próprios inventos, copiou os modelos ingleses, às vezes com a supervisão de mecânicos ingleses; os ingleses que tinham um certo gosto pelo continente, como os Cockerill, estabeleceram-se na Bélgica e em várias partes da Alemanha. Entre 1789 e 1848, a Europa e a América foram inundadas por especialistas, máquinas a vapor, maquinaria para processamento e transformação do algodão e investimentos britânicos.
A Grã-Bretanha não gozava dessas vantagens. Por outro lado, possuía uma economia bastante forte e um Estado suficientemente agressivo para conquistar os mercados de seus competidores. De fato, as guerras de 1738-1815, a última e decisiva fase do secular duelo anglo-francês, virtualmente eliminaram do mundo não europeu todos os rivais dos britânicos, exceto até certo ponto os jovens EU A. Além do mais, a Grã-Bretanha possuía uma indústria admiravelmente ajustada à revolução industrial pioneira sob condições capitalistas e uma conjuntura econômica que permitia que se lançasse à indústria algodoeira e à expansão colonial.

II

A indústria algodoeira britânica, como todas as outras indústrias algodoeiras, tinha originalmente se desenvolvido como um subproduto do comércio ultramarino, que produzia sua matéria-prima (ou melhor, uma de suas matérias-primas, pois o produto original era o fustão, uma mistura de algodão e linho) e os tecidos indianos de algodão, ou chita que conquistaram os mercados que os fabricantes europeus tentariam ganhar com suas imitações. Inicialmente eles não foram muito bem sucedidos, embora melhor capacitados a reproduzir competitivamente as mercadorias grosseiras e baratas do que as finas e elaboradas. Felizmente, entretanto, o velho e poderoso interesse estabelecido do comércio lanífero periodicamente assegurava proibições de importação de chitas indianas (que o interesse puramente mercantil da Companhia das Índias Orientais procurava exportar da Índia nas maiores quantidades possíveis), dando assim uma chance aos substitutos da indústria algodoeira nativa. Mais barato que a lã, o algodão e as misturas de algodão conquistaram um mercado doméstico pequeno porém útil. Mas suas maiores chances de expansão rápida estavam no ultramar.
O comércio colonial tinha criado a indústria algodoeira, e continuava a alimentá-la. No século XVIII ela se desenvolvera perto dos maiores portos coloniais: Bristol, Glasgow e, especialmente, Liverpool, o grande centro do comércio de escravos. Cada fase deste comércio desumano, mas sempre em rápida expansão, a estimulava. De fato, durante todo o período de que trata este livro, a escravidão e o algodão marcharam juntos. Os escravos africanos eram comprados, pelo menos em parte, com produtos de algodão indianos, mas, quando o fornecimento destas mercadorias era interrompido pela guerra ou uma revolta na Índia ou arredores, entrava em jogo a região de Lancashire. As plantações das Índias Ocidentais, onde os escravos eram arrebanhados, forneciam o grosso do algodão para a indústria britânica, e em troca os plantadores compravam tecidos de algodão de Manchester em apreciáveis quantidades. Até pouco antes da "partida", quase o total das exportações de algodão da região de Lancashire ia para os mercados americano e africano. Mais tarde a região de Lancashire viria apagar sua dívida com a escravidão preservando-a; pois depois da década de 1790 as plantações escravagistas do sul dos Estados Unidos foram aumentadas e mantidas pelas insaciáveis e vertiginosas demandas das fábricas de Lancashire, às quais forneciam o grosso da sua produção de algodão bruto.
A indústria algodoeira foi assim lançada, como um planador, pelo em puxo do comércio colonial ao qual estava ligada; um comércio que prometia uma expansão não apenas grande, mas rápida e sobretudo imprevisível, que encorajou o empresário a adotar as técnicas revolucionárias necessárias para lhe fazer face. Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de algodão aumentou mais de dez vezes. Assim, a recompensa para o homem que entrou primeiro no mercado com as maiores quantidades de algodão era astronômica e valia os riscos da aventura tecnológica. Mas o mercado ultramarino, e especialmente as suas pobres e atrasadas "áreas subdesenvolvidas", não só se expandia de forma fantástica de tempos em tempos, como também o fazia constantemente sem um limite aparente. Sem dúvida, qualquer pedaço dele, considerado isoladamente, era pequeno pelos padrões industriais, e a competição de diferentes "economias adiantadas" o fez ainda menor. Mas, como já vimos, supondo que qualquer uma das economias adiantadas conseguisse, por um período suficientemente longo, monopolizar todos ou quase todos os seus setores, então suas perspectivas seriam realmente ilimitadas. Foi precisamente o que conseguiu a indústria algodoeira britânica, ajudada pelo agressivo apoio do governo nacional. Em termos de vendas, a revolução industrial pode ser descrita, com a exceção dos primeiros anos da década de 1780, como a vitória do mercado exportador sobre o doméstico: por volta de 1814, a Grã-Bretanha exportava cerca de quatro jardas de tecido de algodão para cada três usadas internamente, e, por volta de 1850, treze para cada oito. E dentro deste mercado exportador em expansão, por sua vez, os mercados colonial e semicolonial, por muito tempo os maiores pontos de vazão para os produtos britânicos, triunfaram. Durante as guerras napoleônicas, quando os mercados europeus foram grandemente interrompidos pelas guerras e bloqueios econômicos, isto era bastante natural. Mas até mesmo depois das guerras, eles continuaram a se afirmar. Em 1820, a Europa, mais uma vez aberta às livres importações da ilha, adquiriu 128 milhões de jardas de tecidos de algodão britânicos; a América, fora os EU A, a África e a Ásia adquiriram 80 milhões; mas por volta de 1840 a Europa adquiriu 200 milhões de jardas, enquanto as áreas "subdesenvolvidas" adquiriram 529 milhões.
Pois dentro destas áreas a indústria britânica tinha estabelecido um monopólio por meio de guerras, revoluções locais e de seu próprio domínio imperial. Duas regiões merecem particular atenção. A América Latina veio realmente depender de importações britânicas durante as guerras napoleônicas, e, depois que se separou de Portugal e Espanha, tornou-se quase que totalmente dependente economicamente da Grã-Bretanha, sendo afastada de qualquer interferência política dos seus possíveis competidores europeus. Por volta de 1820, as importações de tecidos de algodão ingleses feitas por este empobrecido continente já equivaliam a mais de um quarto das importações européias do mesmo produto britânico; por volta de 1840, adquiriu o equivalente quase à metade do que importou a Europa. As Índias Orientais haviam sido, como vimos, o exportador tradicional de tecidos de algodão, encorajada pela Companhia das Índias Orientais. Mas como o interesse industrial estabelecido prevaleceu na Grã-Bretanha, os interesses mercantis da Índia Oriental (para não mencionar os dos próprios indianos) foram empurrados para trás.
A Índia foi sistematicamente desindustrializada e passou de exportador a mercado para os produtos de algodão da região de Lancashire: em 1820, o subcontinente adquiriu somente 11 milhões de jardas; mas por volta de 1840 já adquiria 145 milhões. Isto não era meramente uma extensão gratificante dos mercados de Lancashire. Era um grande marco na história mundial. Pois desde a aurora dos tempos a Europa tinha sempre importado mais do Oriente do que exportado para lá; porque havia pouca coisa que o Oriente necessitava do Ocidente em troca das especiarias, sedas, chitas, jóias etc. que lhe enviava. Os panos de algodão da revolução industrial inverteram pela primeira vez esta relação, que tinha até então se mantido em equilíbrio por uma mistura de exportações de lingotes e roubo. Somente os auto-suficientes e conservadores chineses ainda se recusavam a comprar o que o Ocidente, ou as economias controladas pelo Ocidente, oferecia, até que entre 1815 e 1842 comerciantes ocidentais, auxiliados pelas canhoneiras ocidentais, descobrissem uma mercadoria ideal que podia ser exportada em massa da Índia para o Extremo Oriente: o ópio.
O algodão, portanto, fornecia possibilidades suficientemente astronômicas para tentar os empresários privados a se lançarem na aventura da revolução industrial e também uma expansão suficientemente rápida para torná-la uma exigência. Felizmente ele também fornecia as outras que a tornaram possível. Os novos inventos que o revolucionaram -a máquina de fiar, o tear movido a água, a fiadeira automática e, um pouco mais tarde, o tear a motor - eram suficientemente simples e baratos e se pagavam quase que imediatamente em termos de maior produção. Podiam ser instalados, se necessário peça por peça, por homens que começavam com algumas libras emprestadas, já que os homens que controlavam as maiores fatias da riqueza do século XVIII não estavam muito inclinados a investir grandes somas na indústria. A expansão da indústria podia ser facilmente financiada através dos lucros correntes, pois a combinação de suas vastas conquistas de mercado com uma constante inflação dos preços produzia lucros fantásticos. "Não foram os 5 ou 10%", diria mais tarde um político inglês, com justiça, “mas as centenas ou os milhares por cento que fizeram as fortunas de Lancashire." Em 1789, um ex-ajudante de um vendedor de tecidos, como Robert Owen, podia iniciar com um empréstimo de 100 libras em Manchester; por volta de 1809, ele comprou a parte de seus sócios nas fábricas de New Lanark por 84 mil libras em dinheiro vivo. E seu sucesso nos negócios foi relativamente modesto. Deve-se lembrar que por volta de 1800 menos de 15% das famílias britânicas tinham uma renda superior a 50 libras por ano, e, destas, somente um-quarto ganhava mais de 200 libras por ano.
Mas a indústria do algodão tinha outras vantagens. Toda a sua matéria-prima vinha do exterior, e seu suprimento podia portanto ser expandido pelos drásticos métodos que se ofereciam aos brancos nas colônias- a escravidão e a abertura de novas áreas de cultivo -em vez dos métodos mais lentos da agricultura européia; nem era tampouco atrapalhada pelos interesses agrários estabelecidos da Europa. A partir da década de 1790, O algodão britânico encontrou seu suprimento, ao qual permaneceram ligadas suas fortunas até a década de 1860, nos novos estados sulistas dos EUA. De novo, em pontos cruciais da indústria (notadamente na fiação), o algodão sofreu uma escassez de mão-de-obra eficiente e barata, e foi portanto levado à mecanização. Uma indústria como a do linho, que inicialmente tinha chances bem melhores de expansão colonial do que o algodão, passou a sofrer com o correr do tempo da própria facilidade com que a produção não mecanizada e barata podia ser expandida nas empobrecidas regiões camponesas (principalmente na Europa Central, mas também na Irlanda) onde basicamente havia florescido. Pois a maneira óbvia de se expandir a indústria no século XVIII, tanto na Saxônia e na Normandia, como na Inglaterra, não era construir fábricas, mas sim o chamado sistema "doméstico", no qual os trabalhadores - em alguns casos, antigos artesões independentes, em outros, antigos camponeses com tempo de sobra nas estações estéreis do ano - trabalhavam a matéria-prima em suas próprias casas, com ferramentas próprias ou alugadas, recebendo-a e entregando-a de volta aos mercadores que estavam a caminho de se tornarem patrões. De fato, tanto na Grã-Bretanha como no resto do mundo economicamente progressista, o grosso da expansão no período inicial da industrialização continuou a ser deste tipo. Até mesmo na indústria algodoeira, processos do tipo tecelagem eram expandidos pela criação de multidões de teares manuais domésticos para servir aos núcleos de fiações mecanizados, sendo que o primitivo tear manual era um dispositivo mais eficiente que a roca. Em toda parte a tecelagem foi mecanizada uma geração após a fiação, e em toda parte, incidentalmente, os teares manuais foram morrendo vagarosamente, ocasionalmente se rebelando contra seu terrível destino, quando a indústria não mais necessitava deles.

III

A perspectiva tradicional que viu a história da revolução industrial britânica primordialmente em termos de algodão é portanto correta. A primeira indústria a se revolucionar foi a do algodão, e é difícil perceber que outra indústria poderia ter empurrado um grande número de empresários particulares rumo à revolução. Até a década de 1830, o algodão era a única indústria britânica em que predominava a fábrica ou o "engenho" (o nome derivou-se do mais difundido estabelecimento pré-industrial a empregar pesada maquinaria a motor); a princípio (1780-1815), principalmente na fiação, na cardação e em algumas operações auxiliares, depois (de 1815) também cada vez mais na tecelagem. As "fábricas" de que tratavam os novos Decretos Fabris eram, até a década de 1860, entendidas exclusivamente em termos de fábricas têxteis e predominantemente em termos de engenhos algodoeiros. A produção fabril em outros ramos têxteis teve desenvolvimento lento antes da década de 1840, e em outras manufaturas seu desenvolvimento foi desprezível. Nem mesmo a máquina a vapor, embora aplicada a numerosas outras indústrias por volta de 1815, era usada fora da mineração, que a tinha empregado pioneiramente. Em 1830, a “indústria” e a "fábrica" no sentido moderno ainda significavam quase que exclusivamente as áreas algodoeiras do Reino Unido.
Com isto não se pretende subestimar as forças que introduziram a inovação industrial em outras mercadorias de consumo, notadamente outros produtos têxteis, alimentos e bebidas, cerâmica e outros produtos de uso doméstico. grandemente estimuladas pelo rápido crescimento das cidades. Mas, para começar, estas indústrias empregavam muito menos pessoal: nenhuma se aproximava sequer remotamente do milhão e meio de pessoas empregadas diretamente na indústria algodoeira ou dela dependentes em 1831. Em segundo lugar, seu poder de transformação era muito menor: a cervejaria, que era em muitos aspectos um negócio técnica e cientificamente muito mais avançado e mecanizado, e que se revolucionou muito antes da indústria algodoeira, pouco afetou a economia à sua volta, como pode ser provado pela grande cervejaria Guinness em Dublin, que deixou o resto de Dublin e da economia irlandesa (embora não o paladar local) idênticos ao que eram antes de sua construção. As exigências que se derivaram do algodão - mais construções e todas as atividades nas novas áreas industriais, máquinas, inovações químicas, eletrificação industrial, uma frota mercante e uma série de outras atividades -foram bastantes para que se credite a elas uma grande proporção do crescimento econômico
da Grã-Bretanha até a década de 1830. Em terceiro lugar, a expansão da indústria algodoeira foi tão vasta e seu peso no comércio exterior da Grã-Bretanha tão grande que dominou os movimentos de toda a economia. A quantidade de algodão em bruto importada pela Grão Bretanha subiu de 11 milhões de libras-peso em 1785 para 588 milhões em 1850; a produção de tecidos, de 40 milhões para 2,025 bilhões de jardas. Os produtos de algodão constituíam entre 40 e 50% do valor anual declarado de todas as exportações britânicas entre 1816 e 1848. Se o algodão florescia, a economia florescia, se ele caía, também caía a economia. Suas oscilações de preço determinavam a balança do comércio nacional. Só a agricultura tinha um poder comparável, e no entanto estava em visível declínio.
Não obstante, embora a expansão da indústria algodoeira e da economia industrial dominada pelo algodão zombasse de tudo o que a mais romântica das imaginações poderia ter anteriormente concebido sob qualquer circunstância I., seu progresso estava longe de ser tranquilo, e por volta da década de 1830 e princípios de 1840 produzia grandes problemas de crescimento, para não mencionarmos a agitação revolucionária sem paralelo em qualquer outro período da história britânica recente. Esse primeiro tropeço geral da economia capitalista industrial reflete-se numa acentuada desaceleração no crescimento, talvez até mesmo um declínio, da renda nacional britânica nesse período. Essa primeira crise geral do capitalismo não foi puramente um fenômeno britânico.
Suas mais sérias consequências foram sociais: a transição da nova economia criou a miséria e o descontentamento, os ingredientes da revolução social. E, de fato, a revolução social eclodiu na forma de levantes espontâneos dos trabalhadores da indústria e das populações pobres das cidades, produzindo as revoluções de 1848 no continente e os amplos movimentos cartistas na Grã-Bretanha. O descontentamento não estava ligado apenas aos trabalhadores pobres. Os pequenos comerciantes, sem saída, a pequena burguesia, setores especiais da economia eram também vítimas da revolução industrial e de suas ramificações. Os trabalhadores de espírito simples reagiram ao novo sistema destruindo as máquinas que julgavam ser responsáveis pelos problemas; mas um grande e surpreendente número de homens de negócios e fazendeiros ingleses simpatizava profundamente com estas atividades dos seus trabalhadores luditas porque também eles se viam como vítimas da minoria diabólica de inovadores egoístas. A exploração da mão-de-obra que mantinha sua renda a nível de subsistência, possibilitando aos ricos acumularem os lucros que financiavam a industrialização (e seus próprios e amplos confortos), criava um conflito com o proletariado. Entretanto, um outro aspecto desta diferença de renda nacional entre pobres e ricos, entre o consumo e o investimento, também trazia contradições com o pequeno empresário. Os grandes financistas, a fechada comunidade de capitalistas nacionais e estrangeiros que embolsava o que todos pagavam em impostos -cerca de 8% de toda a renda nacional -, eram talvez ainda mais impopulares entre os pequenos homens de negócios, fazendeiros e outras categorias semelhantes do que entre os
trabalhadores, pois sabiam o suficiente sobre dinheiro e crédito para sentirem uma ira pessoal por suas desvantagens. Tudo corria muito bem para os ricos, que podiam levantar todos os créditos de que necessitavam para provocar na economia uma deflação rígida e uma ortodoxia monetária depois das guerras napoleônicas: era o pequeno que sofria e que, em todos os países e durante todo o século XIX, exigia crédito fácil e financiamento flexível. Os trabalhadores e a queixosa pequena burguesia, prestes a desabar no abismo dos destituídos de propriedade, partilhavam portanto dos mesmos descontentamentos. Estes descontentamentos por sua vez uniam-nos nos movimentos de massa do "radicalismo", da "democracia" ou da "república", cujos exemplares mais formidáveis, entre 1815 e 1848, foram os radicais britânicos, os republicanos franceses e os democratas jacksonianos americanos.
Do ponto de vista dos capitalistas, entretanto, estes problemas sociais só eram relevantes para o progresso da economia se, por algum terrível acidente, viessem a derrubar a ordem social. Por outro lado, parecia haver certas falhas inerentes ao processo econômico que ameaçavam seu objetivo fundamental: o lucro. Se a taxa de retorno do capital se reduzisse. a zero, uma economia em que os homens produziam apenas para ter lucro diminuiria o passo até um "estágio estacionário" que os economistas pressentiam e temiam.
Destas, as três falhas mais óbvias eram o ciclo comercial de boom e depressão, a tendência de diminuição da taxa de lucro e (o que vinha a dar no mesmo) a escassez de oportunidades de investimento lucrativo. A primeira não era considerada séria, exceto pelos críticos do capitalismo como tal, que foram os primeiros a investigá-la e a considerá-la parte integrante do processo econômico capitalista e como sintoma de suas contradições inerentes. As crises periódicas da economia, que levavam ao desemprego, quedas na produção, bancarrotas etc., eram bem conhecidas. No século XVIII elas geralmente refletiam alguma catástrofe agrária (fracassos na colheita etc.) e já se provou que no continente europeu os distúrbios agrários foram a causa primordial das maiores depressões até o final de nosso período. As crises periódicas nos pequenos setores manufatureiros e financeiros da economia eram também conhecidas, na Grã-Bretanha pelo menos desde 1793. Depois das guerras napoleônicas, o drama periódico do boom e da depressão - em 1825-6, em 1836-7, em 1839-42, em 1846-8 – dominou claramente a vida econômica da nação em tempos de paz. Por volta da década de 1830, uma época crucial no período histórico que estudamos, mais ou menos se reconhecia que as crises eram fenômenos periódicos regulares, ao menos no comércio e nas finanças. Entretanto, os homens de negócios comumente consideravam que as crises eram causadas ou por enganos particulares - p. ex. superespeculação nas bolsas americanas - ou então por interferência externa nas tranqüilas atividades da economia capitalista. Não se acreditava que elas refletissem quaisquer dificuldades fundamentais do sistema.
O mesmo não ocorria com a decrescente margem de lucros, que a indústria algodoeira ilustrava de maneira bastante clara. Inicialmente esta indústria beneficiou-se de imensas vantagens. A mecanização aumentou muito a produtividade (isto é, reduziu o custo por unidade produzida) da mão-de-obra, que de qualquer forma recebia salários abomináveis já que era formada em grande parte por mulheres e crianças. Dos 12 mil trabalhadores nas indústrias algodoeiras de Glasgow em 1833, somente 2 mil ganhavam uma média de mais de 11 shillings por semana. Em 131 fábricas de Manchester os salários médios eram de menos de 12 shillings, e somente em 21 eram mais altos 19, E a construção de fábricas era relativamente barata: em 1846, uma fábrica inteira de tecelagem, com 410 máquinas, incluindo o custo do terreno e dos prédios, podia ser construída Por aproximadamente 11 mil libras 20. Mas acima de tudo o maior gasto, relativo à matéria-prima, foi drasticamente diminuído pela rápida expansão do cultivo do algodão no sul dos EU A depois da invenção do descaroçador de algodão de Eli Whitney, em 1793. Se acrescentarmos que os empresários gozavam do benefício de uma inflação sobre o lucro (isto é, a tendência geral dos preços de serem mais altos quando vendiam seus produtos do que quando os faziam), compreenderemos porque as classes manufatureiras se sentiam animadas.
Depois de 1815, estas vantagens começaram a diminuir cada vez mais devido à redução da margem de lucros. Em primeiro lugar, a revolução industrial e a competição provocaram uma queda dramática e constante no preço dos artigos acabados mas não em vários custos de produção. Em segundo lugar, depois de 1815, a situação geral dos preços era de deflação e não de inflação, ou seja, os lucros, longe de um impulso extra, sofriam um leve retrocesso. Assim, enquanto em 1784 o preço de venda de uma libra-peso de fio duplo fora de 10 shillings e 11 pence e o custo da matéria-prima 2 shillings (margem: 8 shillings e 11 pence), em 1812 seu preço era de 2 shillings e 6 pence e o custo da matéria-prima 1 shilling e 6 pence (margem de 1 shilling), caindo em 1832 respectivamente para 11 1/4 pence e 7 1/2 pence, reduzindo a 4 pence a margem para outros custos e lucros 22. Claro, a situação, que era geral em toda a indústria, tanto a britânica como as outras, não era muito trágica. "Os lucros ainda são suficientes", escreveu em 1835 o historiador e campeão do algodão, em mais do que um eufemismo, "para permitir um grande acúmulo de capital na manufatura." Assim como as vendas totais cresceram vertiginosamente, também cresceram os lucros totais mesmo em suas taxas decrescentes. Tudo o que se precisava era uma expansão astronômica e contínua. Não obstante, parecia que o encolhimento das margens de lucro tinha que ser contido ou ao menos desacelerado. Isto não podia ser feito através do corte nos custos. E, de todos os custos, os salários - que McCulloch calculou em três vezes o montante anual da matéria-prima - eram os mais comprimíveis.
Eles podiam ser comprimidos pela simples diminuição, pela substituição de trabalhadores qualificados, mais caros, e pela competição da máquina com a mão-de-obra que reduziu o salário médio semanal dos tecelões manuais em Bolton de 33 shillings em 1795 e 14 shillings, em 1815 para 5 shillings e 6 pence (ou mais precisamente, uma renda líquida de 4 shillings 1 1/2 pence) em 1829-34. E de fato os salários caíram brutalmente no período pós-napoleônico. Mas havia um limite fisiológico nessas reduções, caso contrário os trabalhadores morreriam de fome, como de fato aconteceu com 500 mil tecelões manuais. Somente se o custo de vida caísse podiam também os salários cair além daquele limite. Os fabricantes de algodão partilhavam ponto de vista de que o custo de vida era mantido artificialmente alto pelo monopólio da propriedade fundiária, piorado ainda pelas pesadas tarifas protetoras que um Parlamento de proprietários de terra tinha assegurado às atividades agrícolas britânicas depois das guerras - as Leis do Trigo (Corn-Lall's). Essa legislação protecionista tinha ainda a desvantagem adicional de ameaçar o crescimento essencial das exportações britânicas. Pois se o resto do mundo ainda não industrializado era impedido de vender seus produtos agrícolas, como poderia pagar pelas mercadorias manufaturadas que só a Grã-Bretanha podia - e tinha para - fornecer? O mundo empresarial de Manchester tornou-se portanto o centro da oposição, cada vez mais desesperada e militante, aos proprietários de terras em geral e às Leis do Trigo em particular, constituindo a coluna vertebral da Liga Contra as Leis do Trigo de 1838-46. Mas as Leis só foram abolidas em 1846 e sua abolição não levou imediatamente a uma queda no custo de vida, sendo duvidoso que antes da era das ferrovias e dos navios a vapor mesmo importações livres de alimentos o tivessem feito baixar.
A indústria estava assim sob uma enorme pressão para que se mecanizasse (isto é, baixasse os custos através da diminuição da mão-de-obra), racionalizasse e aumentasse a produção e as vendas, compensando com uma massa de pequenos lucros por unidade a queda nas margens. Seu sucesso foi variável. Como vimos, o crescimento real da produção e das exportações foi gigantesco; bem como, depois de 1815, a mecanização das ocupações até então manuais ou parcialmente mecanizadas, notadamente a tecelagem. Isto tomou a forma principalmente de uma adoção geral da maquinaria já existente ou ligeiramente melhorada, ao invés de uma revolução tecnológica adicional. Embora a pressão por uma inovação técnica aumentasse significativamente - havia 39 patentes novas na fiação e em outros processos da indústria do algodão em 1800-20,51 na década de 1820,86 na década de 1830 e 156 na de 1840 - a indústria algodoeira britânica se achava tecnicamente estabilizada por volta da década de 1830. Por outro lado, embora a produção por trabalhador tivesse aumentado no período pós-napoleônico. isto não se deu em uma" escala revolucionária. A aceleração realmente substancial das operações da indústria iria ocorrer na segunda metade do século.
Havia uma pressão semelhante sobre o índice de rentabilidade do capital, que a teoria contemporânea tendeu a identificar com o lucro. Mas esta consideração leva-nos à fase seguinte do desenvolvimento industrial - a construção de uma indústria básica de bens de capital.

IV

É evidente que nenhuma economia industrial pode-se desenvolver além de um certo ponto se não possui uma adequada capacidade de bens de capital. Eis por que, até mesmo hoje, o mais abalizado índice isolado para se avaliar o potencial industrial de qualquer país é a quantidade de sua produção de ferro e aço. Mas é também evidente que num sistema de empresa privada, o investimento de capital extremamente dispendioso que se faz necessário para a maior parte deste desenvolvimento não é assumido provavelmente pelas mesmas razões que a industrialização do algodão ou outros bens de consumo. Para estes já existe um mercado de massa. ao menos potencialmente: mesmo os homens mais primitivos usam camisas ou equipamentos domésticos e alimentos. O problema resume-se meramente em como colocar um mercado suficientemente vasto de maneira suficientemente rápida ao alcance dos homens de negócios. Mas não existe um mercado desse tipo, por exemplo, para pesados equipamentos de ferro ou vigas de aço. Ele só passa a existir no curso de uma revolução industrial e os que colocaram seu dinheiro nos altíssimos investimentos exigidos até por metalúrgicas bem modestas (em comparação com enormes engenhos de algodão) são antes especuladores, aventureiros e sonhadores do que verdadeiros homens de negócios. De fato, na França, uma seita de aventureiros desse tipo. que especulavam em tecnologia. os saint-simonianos agia como principal propagadora do tipo de industrialização que necessitava de pesados investimentos a longo prazo.
Estas desvantagens aplicavam-se particularmente à metalurgia e especialmente à do ferro. Sua capacidade aumentou graças a algumas inovações simples como a pudelagem - e a laminação na década de 1780, mas a demanda civil da metalurgia permanecia relativamente modesta, e a militar, embora compensadoramente vasta graças a uma sucessão de guerras entre 1756 e 1815, diminuiu vertiginosamente depois de Waterloo. Certamente não era grande o bastante para fazer da Grã-Brelanha um enorme produtor de ferro. Em 1790, a produção britânica suplantou a da França em somente 40%, se tanto, e mesmo em 1800 era consideravelmente menor que a metade de toda a produção do continente, chegando, segundo padrões posteriores, apenas a diminuta quantidade de 250 mil toneladas. Na verdade, a produção britânica de ferro,- comparada à produção mundial, tendeu a afundar nas décadas seguintes.
Felizmente essas desvantagens afetavam menos a mineração, que era principalmente a do carvão, pois o carvão tinha a vantagem de ser não somente a principal fonte de energia industrial do século XIX, como também um importante combustível doméstico, graças em grande parte à relativa escassez de florestas na Grã-Bretanha. O crescimento das cidades, especialmente de Londres, linha causado uma rápida expansão da mineração do carvão desde o final do século XVI. Por volta de princípios do século XVIII, a indústria do carvão era substancialmente uma moderna indústria primitiva, mesmo empregando as mais recentes máquinas a vapor (projetadas para fins semelhantes na mineração de metais não-ferrosos, principalmente na Cornuália) nos processos de bombeamento. Portanto, a mineração do carvão quase não exigiu nem sofreu uma importante revolução tecnológica no período que focalizamos. Suas inovações foram antes melhorias do que transformações da produção. Mas sua capacidade já era imensa e, pelos padrões mundiais, astronômica. Em 1800, a Grã-Bretanha deve ter produzido perto de 10 milhões de toneladas de carvão, ou cerca de 90% da produção mundial. Seu competidor mais próxImo, a França, produziu menos de um milhão.
Esta imensa indústria, embora provavelmente não se expandindo de forma suficientemente rápida rumo a uma industrialização realmente maciça em escala moderna, era grande o bastante para estimular a invenção básica que iria transformar as indústrias de bens de capital: a ferrovia. Pois as minas não só necessitavam de máquinas a vapor em grande quantidade e de grande potência, mas também de meios de transporte eficientes para trazer grandes quantidades de carvão do fundo das minas até a superficie e especialmente para levá-las da superfície aos pontos de embarque. A linha férrea ou os trilhos sobre os quais corriam os carros era uma resposta óbvia; acionar estes carros por meio de máquinas era tentador; acioná-los ainda por meio de máquinas móveis não parecia muito impossível. Finalmente, os custos do transporte terrestre de grandes quantidades de mercadoria eram tão altos que provavelmente os donos de minas de carvão localizadas no interior perceberam que o uso desse meio de transporte de curta distância podia ser estendido lucrativamente para longos percursos. A linha entre o campo de carvão de Durham e o litoral (Stockton-Darlington 1825) foi a primeira das modernas ferrovias. Tecnologicamente, a ferrovia é filha das minas e especialmente das minas de carvão do norte da Inglaterra. George Stephenson começou a vida como maquinista" em Tyneside, e durante anos todos os condutores de locomotivas foram recrutados nesse campo de carvão.
Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ter sido o único produto da industrialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular. Mal tinham as ferrovias provado ser tecnicamente viáveis e lucrativas na Inglaterra (por volta de 1825-30) e planos para sua construção já eram feitos na maioria dos países do mundo ocidental, embora sua execução fosse geralmente retardada. As primeiras pequenas linhas foram abertas nos EUA em 1827, na França em 1828 e 1835, na Alemanha e na Bélgica em 1835 e até na Rússia em 1837. Indubitavelmente, a razão é que nenhuma outra invenção revelava para o leigo de forma tão cabalo poder e a velocidade da nova era; a revelação fez-se ainda mais surpreendente pela incomparável maturidade técnica mesmo das primeiras ferrovias. (Velocidades de ate 60 milhas..: 96 quilômetros - por hora, por exemplo, eram perfeitamente praticáveis na década de 1830, e não foram substancialmente melhoradas pelas posteriores ferrovias a vapor .) A estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia.
De fato, sob um ponto de vista econômico, seu grande custo era sua principal vantagem. Sem dúvida, no final das contas, sua capacidade para abrir países até então isolados do mercado mundial pelos altos custos de transporte, assim como o enorme aumento da velocidade e da massa de comunicação por terra que possibilitou aos homens e às mercadorias, vieram a ser de grande importância. Antes de 1848, as ferrovias eram economicamente menos importantes: fora da Grã-Bretanha porque as ferrovias eram poucas; na Grã-Bretanha porque, devido a razões geográficas, os problemas de transporte eram muito mais fáceis de resolver do que em países com enormes territórios. Mas, na perspectiva dos estudiosos do desenvolvimento econômico a esta altura era mais importante o imenso apetite das ferrovias por ferro e aço, carvão, maquinaria pesada, mão-de-obra e investimentos de capital. Pois propiciava justamente a demanda maciça que se fazia necessária para as indústrias de bens-de-capital se transformarem tão profundamente quanto a indústria algodoeira. Nas primeiras duas décadas das ferrovias ( 1830.50), a produção de ferro na Grã-Bretanha subiu de 680 mil para 2.250.000 toneladas, em outras palavras, triplicou. A produção de carvão, entre 1830 e 1850, também triplicou de 15 milhões de toneladas para 49 milhões. Este enorme crescimento deveu-se prioritariamente à ferrovia, pois em média cada milha de linha exigia 300 toneladas de ferro só para os trilhos. Os avanços industriais, que pela primeira vez tornaram possível a produção em massa de aço, decorreriam naturalmente nas décadas seguintes.
A razão para esta expansão rápida, imensa e de fato essencial estava na paixão aparentemente irracional com que os homens de negócios e os investidores a tiraram-se à construção de ferrovias. Em 1830 havia cerca de algumas dezenas de quilômetros de ferrovias em todo o mundo - consistindo basicamente na linha Liverpool-Manchester. Por volta de 1840 havia mais de 7 mil quilômetros, por volta de 1850 mais de 37 mil. A maioria delas foi projetada numas poucas explosões de loucura especulativa conhecidas como as "coqueluches ferroviárias" de 1835-7 e especialmente de 1844-7; e a maioria foi construída em grande parte com capital, ferro, máquinas e tecnologia britânicos. Estas explosões de investimento parecem irracionais, porque de fato poucas ferrovias eram muito mais lucrativas para o investidor do que outras formas de empresa, a maioria produzia lucros bem modestos e muitas nem chegavam a dar lucro: em 1855, a rentabilidade média do capital aplicado nas ferrovias britânicas era de apenas 3,7%. Sem dúvida, os agentes financeiros, especuladores e outros se saíram muito bem, mas não o investidor comum. E ainda assim, por volta de 1840, 28 milhões de libras foram esperançosamente investidas em ferrovias e, por volta de 1850, 240 milhões de libras.
Por quê? O fato fundamental na Grã-Bretanha nas primeiras duas gerações da revolução industrial foi que as classes ricas acumulavam renda tão rapidamente e em tão grandes quantidades que excediam todas as possibilidades disponíveis de gasto e investimento. (O excedente anual aplicável na década de 1840 foi calculado em cerca de 60 milhões de libras.) Sem dúvida, as sociedades aristocráticas e feudais teriam conseguido gastar uma parte considerável desse excedente em uma vida desregrada, prédios luxuosos e outras atividades não econômicas. Até mesmo na Grã-Bretanha, o sexto Duque de Devonshire, cuja renda normal era realmente principesca, conseguiu deixar para seu herdeiro dívidas de 1 milhão de libras em meados do século XIX (que ele pagou tomando emprestado mais 1 milhão e 500 mil libras e especulando sobre os valores de terrenos.)  Mas o grosso das classes médias, que constituíam o principal público investidor, ainda era dos que economizavam e não dos que gastavam, embora haja muitos sinais de que por volta de 1840 eles se sentissem suficientemente ricos tanto para gastar como para investir. Suas esposas se transformaram em "madames" instruídas pelos manuais de etiquetas que se multiplicavam neste período, suas capelas começaram a ser reconstruídas em I estilos grandiosos e caros, e começaram mesmo a celebrar sua glória coletiva construindo monstruosidades cívicas como esses horrendos town halls imitando os estilos gótico e renascentista, cujo custo exato e napoleônico os historiadores municipais registraram com orgulho.
Uma moderna sociedade de bem-estar social (welfare) ou socialista teria sem dúvida distribuído alguns destes vastos acúmulos para fins sociais. No período que focalizamos nada era menos provável. Virtualmente livres de impostos, as classes médias continuaram portanto a acumular em meio a um populacho faminto, cuja fome era o reverso daquela acumulação. E como não eram camponeses, satisfeitos em socar suas economias em meias de lã ou convertê-las em braceletes de ouro, tinham que encontrar investimentos lucrativos. Mas onde? As indústrias existentes, por exemplo, tinham-se tornado demasiadamente baratas para absorver mais que uma fração do excedente disponível para investimento: mesmo supondo que o tamanho da indústria algodoeira fosse duplicado, o custo do capital absorveria só uma parte dele. Era necessário uma esponja bastante grande para absorver tudo.
O investimento estrangeiro era uma possibilidade óbvia. O resto do mundo - para começar, basicamente velhos governos em busca de uma recuperação das guerras napoleônicas e novos governos tomando emprestado, com seus costumeiros ímpetos e liberalidades, para fins indeterminados - estava muito ansioso por empréstimos ilimitados. O investidor inglês emprestava prontamente. Mas os empréstimos aos sul-americanos, que pareciam tão promissores na década de 1820, e aos norte-americanos, que acenavam na década de 1830, transformaram-se freqüentemente em pedaços de papel sem valor: de 25 empréstimos a governos estrangeiros concedidos entre 1818 e 1831, 16 (correspondendo acerca da metade dos 42 milhões de libras esterlinas a preços de emissão) estavam sem pagamento em 1831. Em teoria, estes empréstimos deviam ter rendido aos investidores 7 ou 9% de juros, quando, na verdade, em 1831, rendiam uma média de apenas 3,1%. Quem não se sentiria desencorajado por experiências como a dos empréstimos a 5% feitos aos gregos em 1824 e 1825 e que só começaram a pagar juros na década de 1870? Logo, é natural que o capital investido no exterior booms especulativos de 1825 e 1835- 7 procurasse uma aplicação aparentemente menos decepcionante.
John Francis, observando a mania de 1851, assim descreveu o homem rico: ele "via o acúmulo da riqueza, com o qual um povo industrializado sempre sobrepuja os métodos comuns de investimento, empregado de forma legítima e justa. O dinheiro que em sua juventude tinha sido gasto em empréstimos de guerra e, em sua maturidade, nas minas sul-americanas, estava agora construindo estradas, empregando mão-de-obra e incrementando os negócios, A absorção de capital (pela ferrovia) era no mínimo uma absorção, se mal sucedida, no país que a efetuava. Contrariamente às minas estrangeiras e aos empréstimos estrangeiros, não podia ser exaurida ou ficar totalmente sem valor".
Se uma outra forma de investimento doméstico podia ter sido encontrada - por exemplo, na construção - é uma questão acadêmica para a qual a resposta permanece em dúvida. De fato, o capital encontrou as ferrovias, que não podiam ter sido construídas tão rapidamente e em tão grande escala sem essa torrente de capital, especialmente na metade da década de 1840. Era uma conjuntura feliz, pois de imediato as  ferrovias resolveram virtualmente todos os problemas do crescimento econômico.

V

Traçar o ímpeto da industrialização é somente uma parte da tarefa deste historiador. A outra é traçar a mobilização e a transferência de recursos econômicos, a adaptação da economia e da sociedade necessárias para manter o novo curso revolucionário.
O primeiro e talvez mais crucial fator que tinha que ser mobilizado e transferido era o da mão-de-obra, pois uma economia industrial significa um brusco declínio proporcional da população agrícola (isto é, rural) e, um brusco aumento da população não agrícola (isto é, crescentemente urbana), e quase certamente, (como no período em apreço) um rápido aumento geral da população, o que portanto implica, em primeira instância, um brusco crescimento no fornecimento de alimentos, principalmente da agricultura doméstica - ou seja, uma “revolução agrícola".
O rápido crescimento das cidades e dos agrupamentos não agrícolas na Grã-Bretanha tinha há muito tempo estimulado naturalmente a agricultura, que felizmente é tão ineficiente em suas formas pré-industriais que melhorias muito pequenas - como uma racional atençãozinha à criação doméstica, ao revezamento das safras, à fertilização e à disposição dos terrenos de cultivo, ou a adoção de novas safras - podem produzir resultados desproporcionalmente grandes. Essa mudança agrícola tinha precedido a revolução industrial e tornou possível os primeiros estágios de rápidos aumentos populacionais, e o ímpeto naturalmente continuou, embora as atividades agrícolas britânicas tivessem sofrido pesadamente com a queda que se seguiu aos preços anormalmente altos das guerras napoleônicas. Em termos de tecnologia e de investimento de capital, as mudanças de nosso período foram provavelmente bastante modestas até a década de 1840, o período em que se pode dizer que a ciência e a engenharia agrícolas atingiram a maturidade. O vasto aumento na produção, que capacitou as atividades agrícolas britânicas na década de 1830 a fornecer 98% dos cereais consumidos por uma população duas a três vezes maior que a de meados do século XVIII foi obtido pela adoção geral de métodos descobertos no início do século XVIII, pela racionalização e pela expansão da área cultivada.
Tudo isto, por sua vez, foi obtido pela transformação social e não tecnológica: pela liquidação (com o "Movimento das Cercas") do cultivo comunal da Idade Média com seu campo aberto e seu pasto comum, a cultura de subsistência e de velhas atitudes não comerciais em relação à terra. Graças à evolução preparatória dos séculos XVI a XVIII, esta solução radical única do problema agrário, que fez da Grã-Bretanha um país de alguns grandes proprietários, um número moderado de arrendatários comerciais e um grande número de trabalhadores contratados, foi conseguida com um mínimo de problemas, embora intermitentemente sofresse a resistência não só dos infelizes camponeses pobres como também da pequena nobreza tradicionalista do interior. O "sistema Speenhamland" de ajuda aos pobres, espontaneamente adotado por juízes-cavalheiros em vários condados durante e depois da fome de 1795, foi analisado como a última tentativa sistemática para salvaguardar a velha sociedade rural contra a corrosão do vínculo monetário. As Leis do Trigo, com as quais o interesse agrário buscava proteger as atividades agrícolas contra a crise posterior a 1815, eram em parte um manifesto contra a tendência de se tratar a agricultura como uma indústria igual a qualquer outra, a ser julgada pelos critérios de lucro. Mas estas reações contra a introdução final do capitalismo no interior estavam condenadas e foram finalmente derrotadas na onda do avanço radical da classe média depois de 1830, pelo novo Decreto dos Pobres de 1834 e pela abolição das Leis do Trigo em 1846.
Em termos de produtividade econômica, esta transformação social foi um imenso sucesso; em termos de sofrimento humano, uma tragédia, aprofundada pela depressão agrícola depois de 1815, que reduziu os camponeses pobres a uma massa destituída e desmoralizada. Depois de 1800, até mesmo um campeão tão entusiasmado do progresso agrícola e do “movimento das cercas" como Arthur Young ficou abalado com seus efeitos sociais. Mas do ponto de vista da industrialização, esses efeitos também eram desejáveis; pois uma economia industrial necessita de mão-de-obra, e de onde mais poderia vir esta mão-de-obra senão do antigo setor não industrial? A população rural doméstica ou estrangeira (esta sob a forma de imigração, principalmente irlandesa) era a fonte mais óbvia, suplementada pela mistura de pequenos produtores e trabalhadores pobres. Os homens tinham que ser atraídos para as novas ocupações, ou - como era mais provável forçados a elas, pois inicialmente estiveram imunes a essas atrações ou relutantes em abandonar seu modo de vida tradicional. A dificuldade social e econômica era a arma mais eficiente; secundada pelos salários mais altos e a liberdade maior que havia nas cidades. Por várias razões, as forças capazes de desprender os homens de seu passado sócio-histórico eram ainda relativamente fracas em nosso período, em comparação com a segunda metade do século XIX. Foi necessária uma catástrofe realmente gigantesca como a fome irlandesa para produzir o tipo de emigração em massa (um milhão e meio de uma população total de 8,5 milhões em 1835-50) que se tornou comum depois de 1850. Não obstante, essas forças eram mais fortes na Grã-Bretanha que em outras partes. Se não o fossem, o desenvolvimento industrial britânico poderia ter sido tão dificultado como o foi o da França pela estabilidade e relativo conforto de seu campesinato e de sua pequena burguesia, que destituíram a indústria da necessária injeção de mão-de-obra.
Conseguir um número suficiente de trabalhadores era uma coisa; outra coisa era conseguir um número suficiente de trabalhadores com as necessárias qualificações e habilidades. A experiência do século XX tem demonstrado que este problema é tão crucial e mais difícil de resolver do que o outro. Em primeiro lugar, todo operário tinha que aprender a trabalhar de uma maneira adequada à indústria, ou seja, num ritmo regular de trabalho diário ininterrupto, o que é inteiramente diferente dos altos e baixos provocados pelas diferentes estações no trabalho agrícola ou da intermitência autocontrolada do artesão independente. A mão-de-obra tinha também que aprender a responder aos incentivos monetários. Os empregadores britânicos daquela época, como os sul-africanos de hoje em dia, constantemente reclamavam da "preguiça" do operário ou de sua tendência para trabalhar até que tivesse ganho um salário tradicional de subsistência semanal, e então parar. A resposta foi encontrada numa draconiana disciplina da mão-de-obra (multas, um código de '.senhor e escravo" que mobilizava as leis em favor do empregador etc.), mas acima de tudo na prática, sempre que possível, de se pagar tão pouco ao operário que ele tivesse que trabalhar incansavelmente durante toda a semana para obter uma renda mínima. Nas fábricas onde a disciplina do operariado era mais urgente, descobriu-se que era mais conveniente empregar as dóceis (e mais baratas) mulheres e crianças: "de todos os trabalhadores nos engenhos de algodão ingleses em 1834-47, cerca de um-quarto eram homens adultos, mais da metade era de mulheres e meninas, e o restante de rapazes abaixo dos 18 anos. ) Outra maneira comum de assegurar a disciplina da mão-de-obra, que refletia o processo fragmentário e em pequena escala da industrialização nesta fase inicial, era o subcontrato ou a prática de fazer dos trabalhadores qualificados os verdadeiros empregadores de auxiliares sem experiência. Na indústria algodoeira, por exemplo, cerca de dois-terços dos rapazes e um-terço das meninas estavam assim "sob o emprego direto de trabalhadores" e eram portanto mais vigiados, e fora das fábricas propriamente ditas tais acordos eram ainda mais comuns. O subempregador, é claro, tinha um incentivo financeiro direto para que seus auxiliares contratados não se distraíssem.

Era bem mais dificil recrutar ou treinar um número suficiente de trabalhadores qualificados ou tecnicamente habilitados, pois que poucas habilidades pré-industriais tinham alguma utilidade na moderna indústria, embora, é claro, muitas ocupações, como a construção, continuassem praticamente inalteradas. Felizmente, a vagarosa semi-industrialização da Grã-Bretanha nos séculos anteriores a 1789 tinha produzido um reservatório bastante grande de habilidades adequadas tanto na técnica têxtil quanto no manuseio dos metais. Assim é que, no continente, o serralheiro, ou chaveiro, um dos poucos artesãos acostumados a um trabalho de precisão com metais, tornou-se o ancestral do montador-fresador e por vezes deu-lhe o nome, enquanto que na Grã-Bretanha o construtor de moinhos e o "operador de máquinas" ou “maquinista" (já comum nas minas e à sua volta) foi quem desempenhou este papel. Não é um mero acidente que a palavra inglesa engineer descreva tanto o trabalhador qualificado em metal quanto o desenhista ou planejador; pois o grosso do pessoal técnico de um nível mais alto podia ser, e era, recrutado entre estes homens com qualificações mecânicas e autoconfiantes. De fato, a industrialização britânica apoiava-se neste fornecimento não planejado das qualificações mais altas, enquanto a indústria continental não podia fazê-lo. Isto explica a chocante negligência com a educação técnica e geral neste país, cujo preço seria pago mais tarde.
Ao lado desse problema de fornecimento de mão-de-obra, os de fornecimento de capital eram insignificantes. Inversamente à maioria dos outros países europeus, não havia escassez de capital aplicável na Grã-Bretanha. A maior dificuldade era que os que controlavam a maior parte desse capital no século XVIII - proprietários de terra, mercadores, armadores, financistas etc. - relutavam em investi-lo nas novas indústrias, que portanto freqüentemente tinham que ser iniciadas com pequenas economias ou empréstimos e desenvolvidas pela lavra dos lucros. A escassez de capital local fez com que os primitivos industriais - especialmente os homens que se fizeram por si mesmos (self-made-men) -fossem mais duros, mais parcos e mais ávidos, e seus trabalhadores portanto proporcionalmente mais explorados; mas isto refletia o fluxo imperfeito do excedente de investimento nacional e não sua inadequação. Por outro lado, os ricos do século XVIII estavam preparados para investir seu dinheiro em certas empresas que beneficiavam a industrialização; mais notadamente nos transportes (canais, facilidades portuárias, estradas e mais tarde também nas ferrovias) e nas minas, das quais os proprietários de terras tiravam royalties mesmo quando eles próprios não as gerenciavam.
Nem havia qualquer dificuldade quanto à técnica comercial e financeira pública ou privada. Os bancos e o papel-moeda, as letras de câmbio, apólices e ações, as técnicas do comércio ultramarino e atacadista, assim como o marketing, eram bastante conhecidos e os homens que os controlavam ou facilmente aprendiam a fazê-lo eram em números abundante. Além do mais, por volta do final do século XVIII, a política governamental estava firmemente comprometida com a supremacia dos negócios. Velhas leis em contrário (tais como o código social dos Tudor) tinham de há muito caído em desuso e foram finalmente abolidos - exceto quando envolviam a agricultura - em 1813 - 35. Na teoria, as leis e as instituições comerciais e financeiras da Grã-Bretanha eram ridículas e destinadas antes a obstaculizar do que a ajudar o desenvolvimento econômico; por exemplo, elas tornavam necessária a promulgação de caros "decretos privados" do Parlamento toda vez que se desejasse formar uma sociedade anônima. A Revolução Francesa forneceu aos franceses - e, através de sua influência, ao resto do continente - mecanismos muito mais racionais e eficientes para tais propósitos. Na prática, os britânicos se saíram perfeitamente bem e, de fato, consideravelmente melhor que seus rivais.
Deste modo bastante empírico, não planificado e acidental construiu-se a primeira economia industrial de vulto. Pelos padrões modernos, ela era pequena e arcaica, e seu arcaísmo ainda marca a Grã-Bretanha de hoje. Pelos padrões de 1848, ela era monumental, embora também chocasse bastante, pois suas novas cidades eram mais feias e seu proletariado mais pobre do que em outros países. A atmosfera envolta em neblina e saturada de fumaça, na qual as pálidas massas operárias se movimentavam, perturbava o visitante estrangeiro. Mas essa economia utilizava a força de um milhão de cavalos em suas máquinas a vapor, produzia dois milhões de jardas (aproximadamente 1.800 mil metros) de tecido de algodão por ano em mais de 17 milhões de fusos mecânicos, recolhia quase 50 milhões de toneladas de carvão, importava e exportava 170 milhões de libras esterlinas em mercadorias em um só ano. Seu comércio era duas vezes superior ao de seu mais próximo competidor, a França, e apenas em 1780 a havia ultrapassado. Seu consumo de algodão era duas vezes superior aos dos EUA, quatro vezes superior ao da França. Produzia mais da metade do total de lingotes de, ferro do mundo economicamente desenvolvido e consumia duas vezes mais por habitante do que o segundo país mais industrializado (a Bélgica), três vezes mais que os EUA, e quatro vezes mais que a França. Cerca de 200 a 300 milhões de libras de investimento de capital britânico - um-quarto nos EUA, quase um-quinto na América Latina - traziam dividendos e encomendas de todas as partes do mundo). Era, de fato, a "oficina do mundo".
E tanto a Grã-Bretanha quanto o mundo sabiam que a revolução industrial lançada nestas ilhas não só pelos comerciantes e empresários como através deles, cuja única lei era comprar no mercado mais barato e vender sem restrição no mais caro, estava transformando o mundo. Nada poderia detê-la. Os deuses e os reis do passado eram impotentes diante dos homens de negócios e das máquinas a vapor do presente.


Revolução Industrial[4]


A industrialização na Grã-Bretanha teve início por volta de 1760. As causas desse processo não devem ser creditadas unicamente à superioridade tecnológica e científica, mas também a condições favoráveis que já existiam no país antes do século XVIII.
A consolidação da monarquia parlamentar alterou profundamente os rumos da economia britânica. O lucro privado e o desenvolvimento industrial tornaram-se prioridades para as iniciativas governamentais.
Na agricultura, a modernização dos processos de produção e colheita eram urgentes. Beneficiados pelas Leis de Cercamento das áreas comunais, promulgadas desde o século XVI, os proprietários particulares investiram capital na melhoria da produção. O movimento de cercamento ou demarcação (Enclosure Acts), retomado com vigor entre 1760 e 1830, foi responsável pela expropriação maciça dos camponeses e pela transformação da terra em mercadoria, um bem lucrativo monopolizado por grupos privados. Utilizava-se o sistema de arrendamento, com a contratação de camponeses ou pequenos proprietários, que se dedicavam a uma produção efetivamente voltada para o mercado. As transformações das propriedades e da exploração agrícola disponibilizaram uma mão-de-obra numerosa, que pôde ser aproveitada no trabalho das minas e na produção manufatureira.
O mercado consumidor da nascente indústria britânica foi, no principio. a própria Grã-Bretanha, uma vez que os fabricantes se preocuparam em produzir mercadorias socialmente úteis, tais como produtos da indústria de cerâmica para a construção ou utilidades domésticas como alfinetes. vasilhas. facas, tesouras, tecidos. produtos alimentares e outras. Posteriormente. o Estado incentivou uma política econômica mais agressiva e partiu para a conquista de mercados fora de seus limites territoriais. acelerando a arrancada imperialista.
A produção lanígera e a algodoeira foram responsáveis pela multiplicação das manufaturas têxteis e pela supremacia britânica no setor. A indústria da lã estava ligada à economia camponesa, associada desde muitas gerações à criação de ovelhas.Já a indústria algodoeira vinculava-se ao comércio ultramarino, tanto pelo fornecimento de matérias-primas (como o fustão. mistura de linho com algodão, e a chita, dos mercados orientais). como pelo: aproveitamento do algodão cultivado em algumas áreas coloniais inglesas da América.
No curso da Revolução Industrial desenvolveu-se a indústria de base, representada principalmente pela metalurgia e, em especial. pela siderurgia. Sua demanda estava ligada ao setor militar. em menor escala, e posteriormente às ferrovias. construídas durante o primeiro quartel do século XIX e responsáveis pelo transporte de mercadorias e de um enorme contingente de pessoas.
O desenvolvimento do setor de transportes ferroviários só se tornou possível graças à pudlagem (processo de diminuição do teor de carbono de um sistema composto) e à mineração do carvão, utilizado como fonte de energia para a indústria. uso doméstico e importante combustível para as locomotivas. O domínio desses processos permitiu que a burguesia britânica acumulasse bens de capital. fundamentais para a consolidação da economia industrial.
Cabe destacar o setor técnico-científico. que alguns historiadores apontam como um dos fatores determinantes do avanço britânico no setor industrial. Trata-se de um tema polêmico. uma vez que não existe uma unanimidade quanto a superioridade tecnológica e científica da Grã-Bretanha.
A industrialização na Grã-Bretanha foi muito mais do I que o fruto de uma revolução técnica e científica. Ela representou uma mudança social profunda na medida em que transformou a vida dos homens. sem se preocupar com os custos sociais e ambientais dessa mudança.     
Uma das primeiras transformações diz respeito ao próprio significado da palavra trabalho. O que antes significava dor, humilhação e pobreza passou a designar fonte de propriedade. riqueza, produtividade e até mesmo a expressão da condição humana. O trabalho passou a dignificar o homem e a qualificá-lo, tornando-se um indicador de posição social.
Outro aspecto relevante é o controle técnico do processo de produção, que passou para as mãos do capitalista, no momento em que se instituiu a divisão e o parcelamento do trabalho. O resultado foi a alienação crescente do trabalhador, cada vez mais afastado do produto final do seu esforço. Em outras palavras, o trabalhador perdeu a visão global do processo de produção.

Alienação: por alienação entende-se a noção de que nossas próprias potencialidades enquanto seres humanos são realizadas ou assumidas por outras entidades. O termo foi utilizado por Marx, primeiramente, para indicar a projeção de poderes humanos nos deuses, Posteriormente, ele o empregou para referir-se a perda de controle do trabalhador sobre a natureza e o produto do seu trabalho.

A "robotização do trabalhador" foi também um aspecto gerado pela Revolução Industrial. O operário especializou-se em servir uma máquina, transformando-se em autômato destinado a desempenhar atividades cotidianas cansativas e monótonas. E um autômato mais vulnerável aos acidentes de trabalho devido à própria monotonia de suas atividades.
Se por um lado o uso contínuo de máquinas diminuiu a necessidade de mão-de-obra, por outro levou os industriais a buscarem o trabalho feminino e infantil como opção para baratear o custo da produção. A industrialização rapidamente englobou todos os membros do grupo familiar, submetendo-os ao capital.
Certas funções femininas, como as tarefas domésticas, o aleitamento e a educação das crianças foram quase totalmente suprimidos, causando um considerável descontrole familiar. Sem contar que os salários das mulheres e das crianças eram bem menores do que os dos homens.
Paul Mantoux, um estudioso da manufatura no século XVIII, primeira fase da Revolução Industrial, relata que o trabalho das crianças era muitas vezes preferido, devido à sua docilidade, à maior facilidade no aprendizado, à submissão no cumprimento das ordens e aos salários menores que recebiam.
A cidade também mudou de fisionomia, em virtude da concentração de grandes multidões nas áreas fabris. Até o início da industrialização, eram centros comerciais de dimensões relativamente reduzidas, voltadas para a administração, o comércio e todo tipo de prestação de serviços. Nelas viviam funcionários públicos. artesãos, mercadores etc.
Nos núcleos urbanos transformados pela indústria, os pobres habitavam bairros populosos ou cortiços com péssimas condições sanitárias. A burguesia optou pelos bulevares, alamedas largas, para construir suas casas suntuosas e caras, porém funcionais, na medida em que o mundo burguês procurava basear-se na praticidade e na beleza.

A moral burguesa


Em termos de sexualidade, a moral burguesa nos séculos XVIII e XIX apresentou um duplo comportamento, bem próximo ao que ainda pode ser percebido em algumas sociedades contemporâneas: castidade para as mulheres solteiras e fidelidade para as casadas; muitas mulheres para os jovens burgueses solteiros e o adultério tolerável para os casados. Mas nada poderia colocar em risco a estabilidade da família ou da propriedade burguesa. Valia a máxima: "a mãe dos meus filhos é diferente".
Ao longo do século XIX, a classe média – formada pelos profissionais liberais, pequenos proprietários (homens de negócios) e funcionários públicos - cresceu e prosperou. O mundo burguês se abriu para aqueles que possuíam talento e certo grau de escolaridade. Suas casas não eram somente o lugar que abrigava o núcleo familiar; eram também "o repouso do guerreiro" e o local de onde o empreendedor operava, sob o olhar de admiração da mulher e dos filhos, embevecidos pela sua capacidade de produzir riquezas e conforto.
Para a massa expropriada restaram os bairros pobres, desprovidos de saneamento básico, iluminação e outros serviços públicos. Esse contexto contribuiu para o surgimento de críticas à condição degradante do trabalhador e de movimentos operários de intensidades diferentes.

A reação do trabalhador


A expropriação da massa de trabalhadores gerou uma sucessão de lutas, diretas ou indiretas, contra a propriedade e o capital representados pela burguesia industrial. No século XVIII ocorreram formas violentas de protestos, como a inundação de minas, a queima de colheitas e destruição de máquinas por trabalhadores urbanos e rurais. Tais ações foram designadas por alguns historiadores pelo termo ludismo.
De acordo com Norberto Bobbio, ludismo foi o nome usado para designar movimentos operários de protesto que se desenvolveram no final do século XVIII e início do século XIX, com o propósito de buscar melhorias salariais e conter a mecanização do ciclo produtivo, principalmente no setor têxtil.
            Os movimentos luditas eclodiram nos condados ingleses de Nottingham, Lancaster e York. Em Nottingham dominou o aspecto de reivindicação salarial, em Yorkshire  mostrou-se fortemente politizado numa perspectiva antigovernamental, contrária à centralização de Londres, e em Lancashire apresentou-se mais organizado e militarizado.
O processo de resistência dos operários às máquinas nas não representou algo irrefletido ou cego, um ato contra a evolução tecnológica. Foram iniciativas contra a alienação do trabalho ao capital, um modo de afirmar seu poder sobre os instrumentos de produção.A destruição do maquinário constituía o último recurso na defesa de um estilo de vida mais folgado e autônomo. Os luditas tinham a máquina como refém.

A Carta do Povo


Os cartistas ingleses das décadas de 1830 e 1840 foram os primeiros a incorporar as idéias de democracia, igualdade e coletivismo a um amplo e significativo movimento de
trabalhadores. Esse movimento teve suas origens no Reform Act de 1832, que conferiu o direito de voto à maioria dos homens adultos da classe média e a quase todos os pequenos proprietários e rendeiros rurais. Mas uma grande massa de trabalhadores agrícolas e industriais continuou excluída do sufrágio.
Afastado da arena pública, o proletariado urbano da Grã-Bretanha reclamava participação efetiva nas eleições, porém enfrentou forte resistência do Parlamento. Diante de tal situação, muitos trabalhadores alistaram-se com entusiasmo ao movimento cartista.
Organizado em 1838 por Feargus O'Connor e William Lovett, o cartismo tem origem numa petição conhecida como Carta do Povo, apresentada ao Parlamento. Seu programa constava de seis pontos importantes: sufrágio universal masculino; igualdade de direitos eleitorais; voto secreto; legislaturas anuais; abolição do censo eleitoral (requisitos de propriedade) para os membros da Câmara dos Comuns; remuneração das funções parlamentares.
Em 1848, os líderes cartistas prepararam uma marcha de operários, que deveria contar com 500 mil homens, para a apresentação de uma petição aos parlamentares. Os organizadores imaginavam que o número de manifestantes forçaria o Parlamento a conceder as reformas.
Entretanto, no dia marcado para a apresentação, 10 de abril de 1848, uma chuva torrencial esvaziou o movimento. Apenas a décima parte dos operários compareceu à marcha. Mas o espírito do cartismo sobreviveu: com exceção da exigência de legislaturas anuais, os demais pontos do programa foram incorporados posteriormente pela sociedade britânica.

A expansão tecnológica não se encerrou com a Revolução Industrial. Na sociedade capitalista atual, ela ainda é vista como um dos fatores que dividem o mundo entre "desenvolvido" e "subdesenvolvido".
Se, por um lado, o desenvolvimento tecnológico trouxe inovações importantes para a sociedade como os avanços na medicina, nas telecomunicações, nos transportes e na produção de bens de consumo, por outro trouxe também o chamado "desemprego estrutural". Milhares de trabalhadores, no mundo inteiro, estão sendo substituídos por máquinas ou por operários multifuncionais - isto é, por aqueles que desempenham múltiplas funções no sistema produtivo. Mais uma vez, grupos sociais inteiros vão sendo historicamente colocados à margem dos benefícios gerados pelo desenvolvimento econômico.

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