Sarkozy conversa com Ben Ali durante visita do presidente francês a Túnis, em abril de 2008
Foto: Reuters
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Sidi Bouzid, região centro-oeste da Tunísia. Um jovem desempregado, Mohamed Bouazzi, 26 anos, faz do próprio corpo uma tocha humana, em protesto contra o desemprego no país. O ato, que provocou a morte de Bouazzi, acorda a população contra o governo do presidente Zine El-Abidine Ben Ali e a revolta popular acua o ditador a tal ponto que, pela primeira vez em 23 anos, ele cogita deixar o poder.
Na França, silêncio.
Os dois países, no entanto, mantêm relações estreitas, a Tunísia tendo sido colônia da França até 1956 e até hoje confiando à França o posto de seu maior parceiro econômico. Mesmo assim, os distúrbios no Magreb vinham sendo tratados com estranho descaso pelas autoridades francesas. O presidente Nicolas Sarkozy se abstém de comentários. Enquanto isso, alguns de seus colaboradores, especialmente no Ministério das Relações Exteriores, emitem comunicados lembrando que os franceses acompanham "de perto o está acontecendo na Tunísia", sem qualquer juízo de valor, na mais completa imparcialidade.
A ministra Michèle Alliot-Marie chega a propor, diante da Assembleia Nacional, que a França ofereça uma "cooperação de segurança" ao regime de Ben Ali, três dias antes que o ditador fosse obrigado a deixar o país, como um foragido. A justificativa era a de que a revolta das ruas estava se tornando cada vez mais violenta e colocando a vida da população em risco. A esquerda, estarrecida, organiza manifestações de apoio ao povo tunisiano nas ruas de Paris e Marselha. Mais de 600 mil tunisianos vivem na França, e entre 21 e 22 mil franceses moram na Tunísia, que também é um dos destinos favoritos de férias dos franceses.
Não à toa, o primeiro local onde se especulou que o ex-presidente colocaria os pés após a sua deposição foi em Paris. Por fim, ele acabou refugiado na Arábia Saudita.
Encerrada a censura à imprensa, as televisões francesas enviam imediatamente dezenas de correspondentes para cobrir os acontecimentos no país, e o assunto passa a ocupar as manchetes de todos os jornais, revistas e canais de rádio e televisão. O âncora de um dos principais telejornais do país, David Pujadas - o Willian Bonner francês -, chegou a apresentar a edição da última segunda ao vivo da capital Túnis.
Com toda a repercussão e a reviravolta nos fatos, o governo francês é obrigado a recuar no silêncio. Coube ao ministro da Defesa francês, Alain Juppé, reconhecer a falha: "A França subestimou a exasperação do povo tunisiano face a um regime policial e a uma repressão severa", afirmou Juppé, na segunda-feira. Deste momento em diante, as frases de apoio e de admiração pelo que fez a população tunisiana começaram, enfim, a florir em território francês. "Cabe aos tunisianos escolher o seu futuro, um futuro democrático, em eleições livres", afirmou um comunicado do Ministério das Relações Exteriores.
Em documentos diplomáticos secretos divulgados em dezembro pelo site WikiLeaks, os Estados Unidos demonstravam preocupação com a forma como a França e a Itália se negam a pressionar a Tunísia a realizar uma reforma política, com vistas à democracia. "Nós devemos trabalhar para levá-los a fazer pressão no governo tunisiano, e a fazer deste assunto uma condição para nossas colaborações futuras", diz um dos despachos americanos.
A culpa pela relação duvidosa entre o "país dos Direitos Humanos" e um Estado ditatorial, no entanto, não pode ser atribuída apenas a Sarkozy: desde a independência da Tunísia, os dois países se apoiam e a França faz vistas grossas ao regime nada democrático que se instalou no seu ex-território, exatamente como ainda faz com a Costa do Marfim, o Gabão ou o Marrocos. Seu predecessor, Jacques Chirac, certa vez foi recebido calorosamente por Ben Ali no aeroporto da capital Túnis, em 2003. Na ocasião, disse: "o primeiro dos direitos humanos é o de comer, o de receber atendimento médico e educação. Neste ponto de vista, temos de reconhecer que a Tunísia está bastante avançada."
Para o especialista em Mundo Árabe e Muçulmano Vincent Geisser, a França prefere se manter em uma espécie de "cegueira ideológica" por julgar que Ben Ali, apesar de se perpetuar no poder à base da força e impor limitações ao direito de expressão, era capaz de reprimir os extremistas islâmicos com eficiência. O temor de ascensão talibã ao poder era mais forte do que a vergonha de não repreender um governante autoritário. Além disso, em troca de apoio, Ben Ali ainda combatia a imigração clandestina à Europa, se tornando ainda mais simpático aos líderes franceses.
"A França desapontou a sociedade tunisiana ao apoiar, até o fim, o regime de Ben Ali. Os democratas tunisianos jamais vão se esquecer que a França não esteve ao lado deles no momento em que mais precisaram", avalia o pesquisador. "Eu acho que isso trará consequências graves para a relação entre os dois países daqui para frente, e diria até que os Estados Unidos poderão se aproveitar desta falha para reforçar a sua inserção na região. Mas a França ainda tem a oportunidade de se redimir, oferecendo o seu mais forte apoio para a formação de um novo regime democrático", disse Geisser.
Momento histórico
A Tunísia começou a viver um forte turbulência social em meados de dezembro, quando jovens e estudantes iniciaram protestos contra os altos índices de desemprego na ruas da capital Túnis. As manifestações logo tomaram vulto e assumiram uma conotação política, criticando a falta de liberdade política no país.
O governo se viu obrigado a agir. Em meio a pedidos de calma à população, o então presidente Ben Ali anunciou o fechamento de universidades e escolas, enquanto o Exército saía às ruas para frear as manifestações. Passaram a haver confrontos regulares, gerando um número ainda incerto de mortos, mas que já passa de 70, segundo dados do governo.
As medidas não foram suficientes, e Ben Ali se viu obrigado a deixar a Tunísia no dia 14 de janeiro, passando o controle do país para o Exército e o comando interino do governo para o primeiro-ministro, Mohammed Ghannouchi. Com a fuga, encerra-se um longo período de governo, iniciado em 1987 e durante o qual Ben Ali se reelegeu diversas vezes.
Sem a presença do ex-ditator, a Tunísia começa a caminhar na direção de um novo cenário político. Na segunda-feira, 16 de janeiro, o comando interino tunisiano convocou a formação de um governo de união nacional para funcionar durante o período transitório até as próximas eleições, convocadas para dentro de seis meses. Presos políticos também receberam anistia, e todos os partidos políticos serão legalizados.
Na França, silêncio.
Os dois países, no entanto, mantêm relações estreitas, a Tunísia tendo sido colônia da França até 1956 e até hoje confiando à França o posto de seu maior parceiro econômico. Mesmo assim, os distúrbios no Magreb vinham sendo tratados com estranho descaso pelas autoridades francesas. O presidente Nicolas Sarkozy se abstém de comentários. Enquanto isso, alguns de seus colaboradores, especialmente no Ministério das Relações Exteriores, emitem comunicados lembrando que os franceses acompanham "de perto o está acontecendo na Tunísia", sem qualquer juízo de valor, na mais completa imparcialidade.
A ministra Michèle Alliot-Marie chega a propor, diante da Assembleia Nacional, que a França ofereça uma "cooperação de segurança" ao regime de Ben Ali, três dias antes que o ditador fosse obrigado a deixar o país, como um foragido. A justificativa era a de que a revolta das ruas estava se tornando cada vez mais violenta e colocando a vida da população em risco. A esquerda, estarrecida, organiza manifestações de apoio ao povo tunisiano nas ruas de Paris e Marselha. Mais de 600 mil tunisianos vivem na França, e entre 21 e 22 mil franceses moram na Tunísia, que também é um dos destinos favoritos de férias dos franceses.
Não à toa, o primeiro local onde se especulou que o ex-presidente colocaria os pés após a sua deposição foi em Paris. Por fim, ele acabou refugiado na Arábia Saudita.
Encerrada a censura à imprensa, as televisões francesas enviam imediatamente dezenas de correspondentes para cobrir os acontecimentos no país, e o assunto passa a ocupar as manchetes de todos os jornais, revistas e canais de rádio e televisão. O âncora de um dos principais telejornais do país, David Pujadas - o Willian Bonner francês -, chegou a apresentar a edição da última segunda ao vivo da capital Túnis.
Com toda a repercussão e a reviravolta nos fatos, o governo francês é obrigado a recuar no silêncio. Coube ao ministro da Defesa francês, Alain Juppé, reconhecer a falha: "A França subestimou a exasperação do povo tunisiano face a um regime policial e a uma repressão severa", afirmou Juppé, na segunda-feira. Deste momento em diante, as frases de apoio e de admiração pelo que fez a população tunisiana começaram, enfim, a florir em território francês. "Cabe aos tunisianos escolher o seu futuro, um futuro democrático, em eleições livres", afirmou um comunicado do Ministério das Relações Exteriores.
Em documentos diplomáticos secretos divulgados em dezembro pelo site WikiLeaks, os Estados Unidos demonstravam preocupação com a forma como a França e a Itália se negam a pressionar a Tunísia a realizar uma reforma política, com vistas à democracia. "Nós devemos trabalhar para levá-los a fazer pressão no governo tunisiano, e a fazer deste assunto uma condição para nossas colaborações futuras", diz um dos despachos americanos.
A culpa pela relação duvidosa entre o "país dos Direitos Humanos" e um Estado ditatorial, no entanto, não pode ser atribuída apenas a Sarkozy: desde a independência da Tunísia, os dois países se apoiam e a França faz vistas grossas ao regime nada democrático que se instalou no seu ex-território, exatamente como ainda faz com a Costa do Marfim, o Gabão ou o Marrocos. Seu predecessor, Jacques Chirac, certa vez foi recebido calorosamente por Ben Ali no aeroporto da capital Túnis, em 2003. Na ocasião, disse: "o primeiro dos direitos humanos é o de comer, o de receber atendimento médico e educação. Neste ponto de vista, temos de reconhecer que a Tunísia está bastante avançada."
Para o especialista em Mundo Árabe e Muçulmano Vincent Geisser, a França prefere se manter em uma espécie de "cegueira ideológica" por julgar que Ben Ali, apesar de se perpetuar no poder à base da força e impor limitações ao direito de expressão, era capaz de reprimir os extremistas islâmicos com eficiência. O temor de ascensão talibã ao poder era mais forte do que a vergonha de não repreender um governante autoritário. Além disso, em troca de apoio, Ben Ali ainda combatia a imigração clandestina à Europa, se tornando ainda mais simpático aos líderes franceses.
"A França desapontou a sociedade tunisiana ao apoiar, até o fim, o regime de Ben Ali. Os democratas tunisianos jamais vão se esquecer que a França não esteve ao lado deles no momento em que mais precisaram", avalia o pesquisador. "Eu acho que isso trará consequências graves para a relação entre os dois países daqui para frente, e diria até que os Estados Unidos poderão se aproveitar desta falha para reforçar a sua inserção na região. Mas a França ainda tem a oportunidade de se redimir, oferecendo o seu mais forte apoio para a formação de um novo regime democrático", disse Geisser.
Momento histórico
A Tunísia começou a viver um forte turbulência social em meados de dezembro, quando jovens e estudantes iniciaram protestos contra os altos índices de desemprego na ruas da capital Túnis. As manifestações logo tomaram vulto e assumiram uma conotação política, criticando a falta de liberdade política no país.
O governo se viu obrigado a agir. Em meio a pedidos de calma à população, o então presidente Ben Ali anunciou o fechamento de universidades e escolas, enquanto o Exército saía às ruas para frear as manifestações. Passaram a haver confrontos regulares, gerando um número ainda incerto de mortos, mas que já passa de 70, segundo dados do governo.
As medidas não foram suficientes, e Ben Ali se viu obrigado a deixar a Tunísia no dia 14 de janeiro, passando o controle do país para o Exército e o comando interino do governo para o primeiro-ministro, Mohammed Ghannouchi. Com a fuga, encerra-se um longo período de governo, iniciado em 1987 e durante o qual Ben Ali se reelegeu diversas vezes.
Sem a presença do ex-ditator, a Tunísia começa a caminhar na direção de um novo cenário político. Na segunda-feira, 16 de janeiro, o comando interino tunisiano convocou a formação de um governo de união nacional para funcionar durante o período transitório até as próximas eleições, convocadas para dentro de seis meses. Presos políticos também receberam anistia, e todos os partidos políticos serão legalizados.
- Especial para Terra